O que a enchente não havia conseguido fazer, a má-fé e a ignorância alcançou. O espetáculo de teatro Cuco - A linguagem dos bebês no teatro, do diretor Mário de Ballenti, depois de convidado foi desconvidado e retirado da programação da Feira do Livro da cidade de Ivoti, aparentemente por decisão personalíssima do atual prefeito da cidade. Como não sou eleitor em Ivoti, mas sou jornalista especializado na editoria de Cultura, quero expressar minha indignação e minha decepção: um sujeito que, em sendo prefeito de uma cidade que inclusive tem um monumento erguido em homenagem ao livro e à leitura e que, até poucos anos atrás, era uma referência cultural no estado do Rio Grande do Sul, graças ao atual prefeito Martin Kalkmann tornou-se um referência ridícula à intolerância e à ignorância em torno do que seja uma peça de teatro e seus efeitos.
Cuco é uma peça em cartaz há mais de uma década, sendo levada em espaços os mais variados. Ballenti é um pesquisador sobre teatro de bonecos e tem um currículo respeitável e admirável. O espetáculo coleciona premiações. Então, um bando de idiotas faz um manifesto contra um espetáculo, sob o argumento de que haveria "doutrinação" do público atingido. E o mandatário da comunidade, acovardado, resolve, em nome da eleição do próximo domingo - porque é óbvio, este foi o motivo de sua decisão - proibir o espetáculo.
O conceito do espetáculo é atingir a sensibilidade de crianças bem pequenas, portanto, sobretudo através da sensorialidade: como isto poderá provocar "doutrinação"? Meu Deus do céu, a gente vive anos e anos sob censura e preconceito e não ouve tudo: quem são estes "pais" que, em nome da liberdade de seus filhos, estão fazendo justamente o contrário, preparando-os, pior, doutrinando-os, eles sim, pela prática de suas iniciativas, a se tornarem indivíduos preconceituosos e ignorantes?
Mario Ballenti e seu grupo foram afetados, recentemente, pelas enchentes em Porto Alegre. Sua sede, no bairro Menino Deus, foi atingida pela água. Para não perder bonecos, cenários, figurinos e tudo o mais, o grupo precisou abandonar sua casa. Foram albergados em outros espaços. Além de não poderem trabalhar (vivem disso), agora enfrentam esta estupidez: deve ser um hediondo plano para comer as criancinhas da colônia alemã brasileira.
Na história de Ivoti, com toda a certeza, deve haver muitas famílias cuja história pregressa está vinculada à miséria vivida na Alemanha e à decisão heroica e desesperada de migrar para sobreviver. O futuro vendido pela administração imperial brasileira não foi bem o que eles encontraram na Serra Gaúcha. Mas eles persistiram, lutaram e venceram. Em plenas comemorações pela passagem dos duzentos anos desta histórica imigração, alguns sujeitos, certamente esquecidos de suas origens e daquilo que depois sua pátria sofreria, com a implantação do nazismo, parecem querer retomar aqueles mesmos processos de violência institucional e física.
Alega o prefeito que os integrantes da companhia artística estariam correndo riscos de serem agredidos. E a cidade não tem força pública? Se alguns não querem que o espetáculo seja realizado, todos os demais ficam privados de assisti-lo? Ou toda a cidade teria a mesma posição de intolerância? Se fosse esta a situação (e eu duvido absolutamente), então estaríamos vivendo uma nova narrativa de O flautista de Hamelin, lembra o leitor? Um 'malévolo' flautista apareceu na cidade e começou a interpretar melodias que sensibilizavam a todas as crianças, que saíam atrás dele. Alguns cidadãos, preocupados com o que pudesse ocorrer, acusaram-no de ser um corruptor de menores, sendo ele expulso. Na história antiga, ele retorna e, vingando-se, leva, com sua música, todas as crianças a se suicidarem nas águas do rio. Na versão de Ivoti, expulso o flautista, as mesmas pessoas que o expulsaram julgaram-se capazes de substituí-lo, mas são elas que acabam por levar as crianças à morte, porque a proibição da sensibilidade, que é um aspecto da vitalidade (Eros), faz a todos nós morrermos, é a morte desta mesma vida que tais cidadãos pretendem defender e redunda numa perda muito mais profunda e lamentável, aquele Tânatos que preteia as folhas das árvores e acaba com o sorriso das pessoas.
Eis o que os intolerantes de Ivoti, com a conivência do prefeito, mostraram: sua tendência de ferir de morte à humanidade. É uma pena: às vésperas da eleição, festa eminentemente democrática, um episódio ditatorial. Que o cidadão de Ivoti decida em qual situação prefere trabalhar e viver.