É surpreendente a gente ler, hoje em dia, que um espectador do teatro no século XVII ia ouvir Shakespeare. Mas é verdade: o texto de então, sem as tecnologias da encenação com que contamos hoje em dia, era para ser ouvido. E se o leitor quiser fazer o teste, peça para que alguém leia uma das shakespereanas: elas têm inúmeras referências acústicas e cromáticas, localizacionais, que ajudam o espectador a 'imaginar' a cena. Aliás, Shakespeare é explícito quanto a isso, em Ricardo III, por exemplo.
De outro lado, quando se pretende transpor um texto originalmente não-dramático para o teatro, enfrenta-se, naturalmente, algumas armadilhas. Os gêneros literários se distinguem justamente por suas diferentes maneiras de lidar com a palavra.
O desafio de Luciano Alabarse, ao transformar as cartas trocadas entre a jornalista Cláudia Tajes e a psiquiatra Diana Corso num espetáculo de teatro em Da Sempre Tua, foi exatamente este. Fazer do que se escreve com intimidade, num determinado ritmo, para outra pessoa, uma fala que soe natural e ritmicamente diversa. Na escrita, podemos riscar e corrigir. Na leitura, podemos retroceder; no espetáculo teatral, tudo o que é dito, dito está.
A simbiose entre personagens e intérpretes é outro desafio. Neste caso, Janaína Pelizzon e Sandra Dani como que se identificam com os personagens Cláudia Tajes e Diana Corso, e daí os contrastes entre as duas personalidades que, inteligentemente, os figurinos realçam e a iluminação de Maurício Moura e João Fraga procuram demarcar, identificando climas e disposições psicológicas diversas.
A cenografia do próprio diretor, com Ricardo Roman Ross, é surpreendente, bonita, poética. As cerejeiras como que nos convidam a uma posição de despojamento e disponibilidade para ouvir, que é o objetivo deste espetáculo: somos como que transformados em voyeurs, entramos nas intimidades dos personagens, descobrindo e nos surpreendendo e/ou encantando com seus pensamentos e experiências.
O resultado final é um trabalho de ritmos diversos, como resultado dos próprios textos. No início, demasiadamente prosaico, excessivamente retórico, o espetáculo vai muito lento. À medida em que o trabalho avança e o espectador vai descobrindo os personagens, há um envolvimento maior, o trabalho ganha ritmo. Por vezes, o texto atrapalha: no caso de Diana Corso, pronomes depois do verbo e algumas passagens muito teóricas, seu estilo, criam dificuldades para o intérprete (em especial Sandra Dani, que teve o texto mais difícil para colocar em cena) e até mesmo para o espectador, por causa da frase demasiadamente longa, o que ocorre menos com Claudia Tajes: jornalista, seu texto facilitou a vida de Janaína Pelizzon. A responsabilidade não é das autoras, é evidente. São seus modos de se expressarem. Aliás, a própria Diana o reconhece, em algum momento. Talvez o dramaturgista Luciano Alabarse devesse cortar algumas frases, simplificar pronomes, substituir palavras... Não me parece que isso seja trair o original, sempre fazemos isso com os clássicos. Ajudaria bastante a tarefa das atrizes.
O que é forte, de verdade, na troca das missivistas, é a sensibilidade quanto aos desafios que a mulher ainda enfrenta no século XXI para se afirmar e ser reconhecida. Aqui está o cerne das cartas, a experiência que as duas mulheres, que originalmente apenas conversavam entre si, traduzem a partir de suas experiências. Isto é profundamente emocionante e mais do que justifica a realização do espetáculo que, em si, por seu tema e enfoque, é universal. Por isso mesmo, acho dispensável a parte final a respeito das enchentes. O encontro ao vivo dos dois personagens torna o espetáculo fechado, bem redondo: Cláudia queria se encontrar, Diana se recusava. Ao final, Diana adere ao convite, se encontram. Do ponto de vista do espetáculo, não precisa mais nada. A enchente é, de fato, outra história.
Entre os muitos acertos e alguns equívocos, ficamos devendo mais um oportuno espetáculo de teatro a Luciano Alabarse e às equipes que ele reúne, sempre profissionais e qualificadas. O tema e seu debate, infelizmente, continua importante e, por isso mesmo, oportuno.