Uma série de iniciativas foram incluídas na programação do Theatro São Pedro e do Multipalco, em iniciativas articuladas pela Secretaria de Estado da Cultura, através do Instituto de Artes Cênicas e da própria Fundação Theatro São Pedro, visando, de um lado, abrir espaços para grupos artísticos do Estado se apresentarem nos espaços da fundação e, de outro, igualmente terem a oportunidade de mostrarem seu trabalho, recebendo cachês que permitam apoio estratégico a conjuntos que foram prejudicados pelas recentes enchentes no estado.
O Edital Atos e Cenas traz um espetáculo mensal, ao longo de toda a temporada, para o Teatro Oficina Olga Reverbel, do Multipalco. Conta com apoio financeiro do Ieacen e do Sesc, garantindo cachês e infraestrutrura para locomoção e hotelaria em Porto Alegre. Já o Festival Movimento Cena Sul, que ocorreu em julho, teve o patrocínio do Banrisul e permitiu que grupos pudessem ocupar os espaços do Olga Reverbel ou do próprio Theatro São Pedro, recebendo cachês bastante significativos, como apoio para a retomada das atividades artísticas no estado.
Para os que gostamos de teatro, ambas as iniciativas nos permitem assistir a trabalhos e conhecer grupos a que nem sempre termos oportunidade de acompanhar em seus trabalhos.
Mesa farta foi um destes trabalhos, produzido pelo Grupo Pretagô, ainda em fevereiro de 2020, antes da Covid. Auto-denomindando-se como um "quilombo das artes", o grupo iniciou suas atividades no interior do Departamento de Arte Dramática da Ufrgs, por iniciativa de Thiago Pirajiba, que ainda hoje é o produtor responsável pelos trabalhos do Pretagô. Assisti, há alguns anos, creio que no âmbito do Palco Giratório, ao primeiro trabalho do Pretagô, Qual a diferença entre o charme o funk?, título que, desde logo, evidenciava uma provocação, uma ironia e uma reivindicação à condição de negritude dos integrantes do grupo. Esta continua sendo a linha de trabalho do conjunto, com este Mesa farta, contando com um elenco de extraordinária qualidade de interpretação (será por que eles estão dizendo o que pensam e sentem e portanto têm maior verdade interna?), com especial destaque a Bruno Fernandes, mas também com performances seguras e entusiasmadas, por isso convincentes, de Laura Lima, Manuela Miranda e Silvana Rodrigues.
Partindo de um roteiro dramático criado pelo coletivo, eles propõem um debate bastante amplo sobre a violência institucional do mundo contemporâneo, mas gradualmente vão apertando o foco até chegarem à questão dos preconceitos étnicos, culminando num texto em que propõem a inversão da situação: se, em vez de um negro ser assassinado ou violentado ou desrespeitado a cada momento, isso ocorresse com um branco, o quanto tal contexto geraria debates e se tornaria visível e perceptível na sociedade?
Com poucos elementos cênicos, com uma movimentação excelente e figurinos criativos, o Pretagô propõe um excelente trabalho, distante do discursivo, capaz de sensibilizar e produzir empatia e reflexão.
Do outro lado, o Núcleo de Investigação do Corpo e Tecnologias, de Santa Maria, trouxe para o espaço do Olga Reverbel Memórias para um menino do ano 2000, texto de Helder Machado, que também é o único intérprete, e direção de Gelson Sommer e Julia Urach.
A ideia do trabalho é interessante. Sua concepção cênica é brilhante: o uso de saquinhos plásticos transparentes é um grande achado e justifica a existência e as experiências do núcleo. O texto começa bem, cheguei a imaginar (e gostar) que teríamos um espetáculo de ficção científica no palco, o que é raro e seria bem vindo. Mais uma vez, a simbiose entre as projeções videográficas e o movimento do ator em cena, estão muito bem concretizadas. Mas na última parte do texto, quando há um retorno no tempo, até o início do século XXI, o texto se perde e o espetáculo se compromete. Confesso que não entendi mais nada: há um retorno ao útero materno, nos moldes do filme 2021: Uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick?
Divulgado enquanto "dança", o trabalho, na verdade, é um mix entre teatro e movimentos coreográficos (o conceito de dança fica aqui muito alargado), em que as experimentações entre linguagens é o principal resultado positivo do trabalho. O grupo precisa, contudo, dar maior atenção à dramaturgia, sob pena de os trabalhos se tornarem puramente sensoriais mas carentes de significado.