Estamos completando 10 anos da morte de Ariano Suassuna, grande escritor e dramaturgo paraibano. Atropelado pela perda do pai, quando ainda criança, por questões políticas, que redundariam no movimento revolucionário de 1930, Suassuna integrou uma geração brilhante, cuja dupla formação, católica e nacionalista, levaria um conjunto significativo de intelectuais a atuarem em movimentos de ponta em defesa de suas ideias. Ariano foi contemporâneo e amigo de outro grande escritor, Hermilo Borba Filho. Com ele repartiu a idealização de grupos de teatro popular, com o objetivo de criar uma dramaturgia eminentemente brasileira.
Hermilo Borba Filho dedicou-se ao teatro de bonecos, dirigiu dezenas de espetáculos teatrais, escreveu dramaturgia e até mesmo uma história do teatro (1950), mas se destacou sobretudo enquanto romancista, Suassuna, ao contrário, logo iria se destacar enquanto dramaturgo, quando da criação de Auto da Compadecida (1955), estreada dois anos depois.
Henrique Oscar, que assina o prefácio da Editora Agir da peça, em sua coleção Teatro moderno, depois de aproximar a obra de Gil Vicente e do teatro espanhol do século XVII, além da comedia dell arte, observa: "Desta vez, porém, a aproximação de um texto brasileiro com formas e até temas dos grandes gêneros da história do teatro não é apontada como defeito, pois não houve cópia, imitação servil ou mera transposição, mas autêntica recriação em termos brasileiros, tanto pela ambientação como pela estruturação, sendo uma obra inédita em suas características, inovadora e, portanto, absolutamente original".
O que Henrique Oscar não observa, acrescento eu: por trás do fundo religioso medieval, Suassuna acrescentou a tradição de relatos orais, igualmente populares, mas que foram trabalhados, dramaticamente, pela farsa - proibida de entrar nos espaços santificados das igrejas - mas que gozavam de enorme popularidade e que se propagaram através de reproduções oralizadas ao longo dos séculos, chegando inclusive ao nordeste brasileiro.
O que há de novo no texto de Suassuna, é o espírito jocoso e cômico do brasileiro, mas ainda assim, na melhor tradição da narrativa picaresca espanhola, presente num personagem verdadeiramente universal, que é o Pedro Malasartes - um tipo literalmente anônimo, sem eira nem beira, que sobrevive de sua inventividade. É o caso, neste Auto da Compadecida, de João Grilo, acompanhado do fiel (e sempre explorado) companheiro Chicó.
Um outro aspecto importante da idealização da obra é a escolha da personificação da Virgem Maria enquanto Compadecida, ou seja, aquela que compreende as eventuais falhas e deslizes da humanidade miserável e socialmente marginalizada, a que pertencem João Grilo e Chicó. Outra novidade, verdadeiramente revolucionária foi incluir sacerdote e até mesmo um Bispo, além do sacristão, entre os personagens do mal, além do padeiro e sua esposa, o prefeito e outras figuras semelhantes, enquanto relativiza os erros do cangaceiro. Ou seja, Ariano Suassuna propunha uma verdadeira revolução de valores éticos para a cultura brasileira.
Mas Ariano Suassuna não escreveu só esta peça. Seguiram-se O Santo e a porca (1957), O casamento suspeitoso (1957), A pena e a lei (1960), A farsa da boa preguiça (1960) e assim por diante.
Tive a sorte de não apenas assistir a inúmeras das encenações das obras de Suassuna quanto conviver com ele, em algumas ocasiões, quando de suas visitas, escassas, é verdade, mas sempre marcantes, a Porto Alegre. Acho que não apenas os grupos dramáticos nordestinos, quanto nacionais, deveriam valorizar a dramaturgia de Suassuna. Mais que isso: acho que mais peças teatrais de Suassuna deveriam ser traduzidas para outros idiomas, para receber encenações que mostrassem todas as suas admiráveis qualidades.
Para resumir, para além das qualidades estritamente dramáticas de seus textos, como a criatividade das situações e o diálogo sempre leve e dinâmico, eu diria que é a atualidade universal dos textos de Suassuna que garantem o interesse por seus trabalhos. No teatro, ele é um Guimarães Rosa ou um Simões Lopes Neto. Regional, porque universal. Universal, porque regional.