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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 25 de Julho de 2024 às 19:48

A magia das narrativas

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Antonio Hohlfeldt
O fato de o escritor Wilson Freire, médico de formação, escritor, artista plástico e compositor, não ser encontrado enquanto verbete inclusive nos dicionários de literatura brasileira, em que pese ele ter certamente mais de 50 anos e uma extensa obra publicada, principalmente com romances, diz bem o quanto a circulação de artistas oriundos das regiões brasileiras é prejudicada pelo centralismo do eixo Rio-São Paulo entre nós. Pois Wilson Freire é inclusive compositor parceiro do extraordinário Antonio Nóbrega, que, por sua vez, tem proximidade com o Grupo Armorial, de Ariano Suassuna.
O fato de o escritor Wilson Freire, médico de formação, escritor, artista plástico e compositor, não ser encontrado enquanto verbete inclusive nos dicionários de literatura brasileira, em que pese ele ter certamente mais de 50 anos e uma extensa obra publicada, principalmente com romances, diz bem o quanto a circulação de artistas oriundos das regiões brasileiras é prejudicada pelo centralismo do eixo Rio-São Paulo entre nós. Pois Wilson Freire é inclusive compositor parceiro do extraordinário Antonio Nóbrega, que, por sua vez, tem proximidade com o Grupo Armorial, de Ariano Suassuna.
Isso explica sua amplitude criativa, que vai do popular (romances de cordel) às experiências estilísticas mais requintadas, como o evidencia o romance A mulher que queria ser Micheliny Verunschk, transposto ao teatro por Adriane Mottola, Fernando Kike Barbosa, Angela Spiazzi (também assistente de direção e diretora de movimento do espetáculo), e a atriz Sandra Possani, que vive a única personagem do espetáculo.
Esta Micheliny Verunschk existe de verdade, também é escritora e é contemporânea do escritor, o que faz supor uma brincadeira do escritor que, evidentemente, ganha maior interesse entre os leitores recifenses, mas que não deixa de funcionar como um elemento de curiosidade na trama da peça teatral. Não conheço o romance (aliás, boa parte dos livros de Wilson Freire são edições independentes ou governamentais, a partir de prêmios por ele vencidos), o que, mais uma vez, dificulta sua circulação. Nem mesmo data de nascimento consegui encontrar: mas abundam entrevistas e referências a ele em produções as mais variadas, o que atesta sua militância e dinamicidade.
Portanto, e em síntese: o monólogo, que é uma produção do grupo Stravaganza pela passagem de seus 36 anos de existência, é uma transposição de um romance eminentemente experimental, em torno de uma mulher que rememora sua vida sofrida, após ser violentada sexualmente anda menor de idade e transformar-se numa prostituta que, não obstante sua ignorância sobre as coisas da escrita e da leitura (imaginava que as letras entravam pelos olhos das pessoas que então aprendiam a ler), queria tornar-se escritora. Em última análise, a narrativa que seguimos nas páginas do romance (ou acompanhamos, neste espetáculo de cerca de uma hora de duração) é o resultado desta escrita, numa encenação que tem cenário de Rodrigo Shalako, figurino de Liane Venturella, iluminação e videografia de Ricardo Vivian e cena sonora de A|lvaro Rosa Costa, direção geral de Adriane Mottola.
Não deve ter sido fácil esta transposição do romance ao palco. A primeira parte do espetáculo é guiada por um texto extremamente poético, não realista, em que podemos pressentir inclusive rimas entre as frases, como se fosse um poema. Mais ou menos pela metade do percurso, as coisas mudam totalmente: entre uma espécie de paródia aos discursos literários, com referências a academias de literatura e gêneros textuais, o que derruba por completo a unidade do texto e, por consequência, a unidade do espetáculo. Ao final, retoma-se a narrativa original e o espetáculo se reencontra.
A transposição do texto literário para o espetáculo cênico optou acertadamente pela exploração de diferentes linguagens, e daí o destaque da videografia que projeta passagens do texto em desenhos que ocupam o espaço do pano de fundo. Em outros momentos, fica evidente a importância do preparo corporal, com movimentos quase que dançados em cena. No conjunto, porém, parece-me que o espaço do Theatro São Pedro não ajudou o conceito central da encenação, que teria rendido bem mais no espaço Olga Reverbel do Multipalco, apesar de toda a proximidade que em geral o Theatro São Pedro propicia e que é sempre valorizada pelos grupos.
Sandra Possani é uma atriz excepcional e dá o máximo de si neste trabalho, mas, do mesmo modo, ela parece às vezes perdida no espaço que ficou demasiadamente grande para o desenvolvimento cenotécnico originalmente idealizado. De qualquer modo, é um espetáculo muito bonito e tocante, a emocionar e prender nossa atenção, a evidenciar a magia com que as narrativas, quer textuais, quer cênicas, sempre nos envolvem.
 

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