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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 19 de Julho de 2024 às 00:40

A essência do teatro

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Antonio Hohlfeldt
O projeto Atos e cenas foi idealizado a partir da Fundação Theatro São Pedro e o IEACEN - Instituto de Artes Cênicas, através da Sedac, após as enchentes, concretizando-se no edital 03/2024, com apoio do Sesc/RS - no sentido de abrir espaços de trabalho para grupos teatrais afetados pelos cataclismas. Ele ocorre todas as quartas feiras, com espetáculos às 19h, no Teatro Oficina Olga Reverbel, do Multipalco, que constitui parte da Fundação Theatro São Pedro.
O projeto Atos e cenas foi idealizado a partir da Fundação Theatro São Pedro e o IEACEN - Instituto de Artes Cênicas, através da Sedac, após as enchentes, concretizando-se no edital 03/2024, com apoio do Sesc/RS - no sentido de abrir espaços de trabalho para grupos teatrais afetados pelos cataclismas. Ele ocorre todas as quartas feiras, com espetáculos às 19h, no Teatro Oficina Olga Reverbel, do Multipalco, que constitui parte da Fundação Theatro São Pedro.
O primeiro trabalho apresentado foi Raiz amarga, projeto do diretor Clóvis Massa, com a atriz Letícia Schwartz, a partir de depoimento de Reli Gizelstein Blau, avó da atriz, à USC Shoah Foundation, em setembro de 1997. Fica evidente que o espetáculo a que estamos assistindo agora, e que na verdade já cumprira pequena temporada no ano passado, recebendo o Prêmio Açorianos de teatro Adulto como Melhor espetáculo, melhor direção, melhor atriz, melhor dramaturgia e melhor cenografia, experimentou uma longa e aprofundada maturação. Mais de vinte anos...
O espaço do Olga Reverbel é ideal para este tipo de trabalho, que exige a cumplicidade do espectador que se torna partícipe da encenação: neste caso, cada um de nós reparte da cerimônia íntima mas universal do Pessach, por todo o indivíduo de origem judaica, celebrando a saída do cativeiro do Egito e a travessia do deserto, chegando à terra prometida. É uma cerimônia íntima, porque ocorre no recesso familiar, mas é universal, porque sua simbologia é universal, mesmo para os não judeus. Quem de nós não conhece aquelas passagens do Velho Testamento?
Letícia Schwartz reelaborou aqueles registros e memórias e resultou neste Raiz amarga, referência ao maror, conjunto de raízes amargas que são utilizadas na confecção daquela refeição e que simbolizam, evidentemente, as agruras da salvadora mas longuíssima viagem. No texto cuja dramaturgia é assinada pela atriz e o diretor, temos uma dupla narrativa, sobrepondo-se uma à outra e constituindo, ao final, uma única reflexão, que atualiza àquelas memórias, tanto as da avó, quanto as da neta: as travessias que parcelas marginalizadas das populações contemporâneas continuam enfrentando para sobreviver em meio às perseguições, preconceitos ou simplesmente negações sobre suas existências e suas precaríssimas condições de resistência.
A encenação, de cerca de uma hora de duração, tem as figuras de Arlete Cunha, como a avó - excepcional - e a própria Letícia Schwartz - pura verdade - como intérpretes da avó e da neta. Embora o espaço básico esteja concentrado em torno da mesa/altar da cerimônia da comida, o roteiro salta para espaços diversos e tempos variados, compondo gradativamente um painel das relações entre a avó e a neta, evidenciando a importância da mais velha, não apenas quanto à herança judaica, quanto ao sentimento de justiça social que a mais nova adquire e cuja consciência a faz participar de esforços no sentido de se ultrapassarem os preconceitos e estereótipos.
Neste sentido, o espaço cênico, composto pelo próprio diretor, graças à iluminação criada por Carol Zimmer e os figurinos - criação do grupo - mais a trilha sonora de Daniel Roitman, que retoma temas tradicionais judaicos, permite que todos repartamos aquela cerimônia que anualmente é retomada pelas famílias judias, mas que aqui tem seu sentido ampliado e projetado para muito além daquele espaço. A proposta realista (no sentido de que vamos comer e beber, efetivamente, as coisas ali servidas), mas ao mesmo temo profundamente poética, com um ritmo lento mas muito bem marcado para o desenvolvimento do espetáculo, dando tempo a que cada um introjete as experiências vividas e as referências trazidas, faz com que Raiz amarga se transforme num trabalho de exceção, e é mais do que justo ter sido tão destacado com as premiações do ano passado, assim como ter oportunidade de voltar à cena para ser mais visto, mais conhecido e mais valorizado. Trata-se de um espetáculo que eleva a arte teatral, porque resulta de uma referencialidade histórica e cultural eminentemente universais, um espetáculo fortemente idealizado e assim criado e, enfim, de um verdadeiro encontro entre artista e espectador que só a verdadeira arte permite.
Emocionante, tocante, fundamental, Raiz amarga merece mais oportunidades para ser visto e admirado. É um espetáculo que revela a essência do teatro.
 

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