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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 04 de Julho de 2024 às 19:55

Maria Clara e a dramaturgia infantil mundial

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Antonio Hohlfeldt
"E a lembrança do rio barrento que desce entre o milharal e a mata. Boiar no rio e deixar-se levar como um defunto. Era bom assustar Selma, que via as meninas passarem boiando rio abaixo. Procurar ovo de galinha fujona debaixo do bambuzal. Trepar na jabuticabeira e comer até se fartar. (...) O sapo enorme chamava-se Jerônimo. Todas as tardes chegava na varanda da fazenda para caçar besouros (...). Quando o trem se aproximava, entrávamos no mata-burro e o trem passava por cima. Aventura." (Maria Clara Machado - eu e o teatro, pgs. 17 e 18; Editora AGIR/RJ, 1991).
"E a lembrança do rio barrento que desce entre o milharal e a mata. Boiar no rio e deixar-se levar como um defunto. Era bom assustar Selma, que via as meninas passarem boiando rio abaixo. Procurar ovo de galinha fujona debaixo do bambuzal. Trepar na jabuticabeira e comer até se fartar. (...) O sapo enorme chamava-se Jerônimo. Todas as tardes chegava na varanda da fazenda para caçar besouros (...). Quando o trem se aproximava, entrávamos no mata-burro e o trem passava por cima. Aventura." (Maria Clara Machado - eu e o teatro, pgs. 17 e 18; Editora AGIR/RJ, 1991).
"O bandeirantismo me trouxe o teatro. À noite, depois do trabalho, fazíamos os fogos de conselho. Todas em volta de uma fogueira, onde dançávamos, contávamos histórias e representávamos. Eu sempre fui a encarregada de fazer o programa. Fui Joana d´Arc, Maria Quitéria, fiz mimica e palhaçadas" (pgs. 23 e 24).
Essas duas passagens iniciais da autobiografia de Maria Clara Machado me parecem sintetizar os antecedentes que a levaram não apenas ao teatro como a criar uma dramaturgia infantil que, por sua renovação e criatividade (marcada por intensa brasilidade), tornam-na uma espécie de correspondente de Monteiro Lobato na Literatura Infantil - ele, nos anos 1920 e 1930; ela, nos anos 1950 em diante).
Maria Clara ficou órfã de mãe aos nove anos de idade, mas ninguém tocou no assunto, embora, como ela recorda, tenha - junto às irmãs - recebido abraços e beijos. Elas sabiam que a mãe morrera, mas ninguém ajudou que elaborassem isso. Ela revela que somente adulta, quando escreveu Pluft, o fantasminha (na minha opinião, sua melhor peça infantil, um clássico universal para todas as idades) conseguiria elaborar essa perda. Aliás, há uma versão cinematográfica, de 1962, assinada por Romain Lesage. Em 2022, uma nova versão foi realizada por Rosane Svartman. Maria Clara conta, num emocionante vídeo gravado em 2013, que tinha medo de tudo. Então, resolveu botar todos os seus medos no personagem Pluft, e assim, pode elaborá-los e vencê-los.
Sua obra dramática está reunida em seis volumes, pela Editora AGIR. Algumas buscam justamente neutralizar e racionalizar os medos infantis, como A bruxinha que era boa (1958), ou Pluft, o fantasminha (1955), em que as situações tradicionais são invertidas, possibilitando às crianças aproximar-se de seus temores, enfrentando-os e racionalizando-os. Mas há textos deliciosos marcados pelas experiências da fazenda do avô, como os já referidos, a exemplo de O rapto das cebolinhas (1954) ou a recriada narrativa O chapeuzinho vermelho (1956), em que os elementos da natureza são antropomorfizados e ganham vida para conviver com a personagem principal, numa linguagem eminentemente brasileira, que deu outra dimensão ao clássico de Charles Perrault, mais tarde já reelaborado pelos Irmãos Grimm.
Ainda há textos profundamente poéticos, como O cavalinho azul, de 1960 (que também virou filme, assinado por Eduardo Escorel, em 1984) ou A menina e o vento (1963). Além de O chapeuzinho vermelho; outras obras revisitam alguns clássicos infantis, como A gata borralheira (1962) e O patinho feio (1976) - sendo que, em algumas delas, há uma releitura bastante inovadora e moderna, como Os cigarras e os formigas (1976) ou João e Maria (1980). Nesses dois últimos casos, os enredos são trazidos para um contexto imediato da realidade brasileira e Maria Clara inclui observações, com forte crítica, sobre as diferenças sociais do País: talvez seja por isso que a censura, ao tempo da ditadura, considerava a obra da dramaturga "perniciosa" para a infância. Houve, inclusive, um episódio em que  a diretora gaúcha Irene Brietscke teve sua montagem de O aprendiz de feiticeiro (1969) proibida um dia antes da estreia, no Teatro Renascença. Isso só aumenta a importância da autora, evidenciando sua compreensão de que teatro para crianças não é teatro de baboseiras, mas um modo de sociabilizar os pequenos.
Por tudo isso, Maria Clara Machado é um clássico brasileiro. Certamente uma contribuição muito importante da dramaturgia brasileira para a dramaturgia infantil mundial.
 

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