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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 24 de Maio de 2024 às 00:40

Paulo César Pereio, simples e totalmente ator

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Antonio Hohlfeldt
Dois episódios que presenciei, envolvendo Paulo César Peréio, falecido no último domingo: ele integrava o elenco da peça Roda Viva, texto de estreia de Chico Buarque na dramaturgia. Havia ameaças do CCC - Comando de Caça aos Comunistas contra o elenco, ameaças que se tornaram concretas em Porto Alegre, quando a montagem estreou no então Teatro Leopoldina, na Avenida Independência. Como Pereio era gaúcho (nasceu no Alegrete), ele não ficava com o elenco no hotel, mas hospedava-se na casa da família. Logo na noite de estréia do espetáculo, houve um ataque do CCC contra o elenco da peça. Os camarins do teatro ficavam muito próximos à rua, com pleno acesso pela João Telles, e foram invadidos. Os atores foram pichados, deixados nus e ameaçados de morte. Pereio foi o único que escapou. A peça cancelou a temporada, a equipe voltou para São Paulo e a produção acabou sendo proibida pela censura. O texto da peça, embora pouco conhecido, é importante para a compreensão da obra do compositor e dramaturgo.
Dois episódios que presenciei, envolvendo Paulo César Peréio, falecido no último domingo: ele integrava o elenco da peça Roda Viva, texto de estreia de Chico Buarque na dramaturgia. Havia ameaças do CCC - Comando de Caça aos Comunistas contra o elenco, ameaças que se tornaram concretas em Porto Alegre, quando a montagem estreou no então Teatro Leopoldina, na Avenida Independência. Como Pereio era gaúcho (nasceu no Alegrete), ele não ficava com o elenco no hotel, mas hospedava-se na casa da família. Logo na noite de estréia do espetáculo, houve um ataque do CCC contra o elenco da peça. Os camarins do teatro ficavam muito próximos à rua, com pleno acesso pela João Telles, e foram invadidos. Os atores foram pichados, deixados nus e ameaçados de morte. Pereio foi o único que escapou. A peça cancelou a temporada, a equipe voltou para São Paulo e a produção acabou sendo proibida pela censura. O texto da peça, embora pouco conhecido, é importante para a compreensão da obra do compositor e dramaturgo.
Outro episódio: Pereio já havia recebido um Kikito, o prêmio do Festival de Cinema de Gramado, enquanto ator coadjuvante. Tendo participado de mais de 60 filmes de longa metragem, ao longo de sua carreira, um de seus trabalhos foi em Toda nudez será castigada, o cafetão da principal personagem feminina. Embora ele mesmo não tenha sido premiado, o filme ganhou o Kikito de melhor filme naquele ano. Na projeção da obra, e depois na premiação, o então Secretário de Turismo, Desportes e Cultura teve um ataque moralista, em plena plateia do cinema em Gramado, e saiu-se com impropérios, aos gritos, contra o prêmio, o filme e em defesa da família brasileira. Naquela noite, Pereio estava lá, tememos o pior, mas felizmente, ele foi contido. O que não queríamos é que o festival perdesse o apoio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul...
Por que relembro os dois episódios? Vindo aos 12 anos para Porto Alegre - o pai era militar - Pereio desde cedo tomou a vida em suas mãos. Ele ia decidir sobre sua vida. E assim o fez ao longo destes 83 anos. Foi ator, antes e acima de tudo. No cinema, na televisão, no teatro, onde estreou em 1958, em Esperando Godot. Fez parte do importante Teatro de Equipe, da capital sul-rio-grandense, ao lado de Paulo José e Lilian Lemmertz, ambos já falecidos. Participou do elenco de montagens como O sr. Puntila e seu criado Matti, de Bertolt Brecht, com direção de Flávio Rangel, sob cuja direção trabalhou ainda em Édipo rei (que já tive a oportunidade de assistir), estreando por Paulo Autran, a que se seguiram, dentre outros, A mulher sem pecado, de Nelson Rodrigues; O balcão, de Victor Garcia, com textos de Arrabal (1969), a que também assisti em São Paulo; O anti-Nelson Rodrigues (1974); alcançando sucesso comercial com O analista de Bagé (1984), a partir do personagem de Luís Fernando Verissimo; e Galileu Galilei (2005).
No cinema, esteve presente em filmes memoráveis, como Os fuzis, de Ruy Guerra (1964), Terra em transe, de Glauber Rocha (1967), Toda nudez será castigada (1973), Vai trabalhar, vagabundo (também de 1973), Eu te amo, de Arnaldo Jabor (1980) etc.
Pereio, no entanto, profissionalmente, viveu uma outra situação que o ajudava bastante a sobreviver. Sua voz era preferida, como se dizia, por nove entre dez empresas de publicidade: sua irretocável dicção, sua tonalidade de voz, sua articulação sonora etc. Isso não impediu que ele estivesse vivendo no recanto dos artistas, no Rio de Janeiro, dirigido pelo também ator Stepan Nercessian, quando baixou hospital.
Pereio foi sempre um apaixonado. Nunca teve medo de viver, de dizer o que pensava e sentia, de participar de movimentos e iniciativas com as quais se identificava, como no caso da Campanha pela Legalidade, em defesa da posse de João Goulart, enquanto presidente do país, em 1961.
Com a morte de Paulo César Pereio, perdemos um artista que é parte obrigatória da história das artes cênicas do País. Mas perdemos, acima de tudo, um cidadão.

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