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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 02 de Maio de 2024 às 20:48

Um espetáculo desafiadoramente cerebral

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Antonio Hohlfeldt
A curta temporada de O veneno do teatro, do espanhol Rodolf Sirera, não só permitiu ao público conhecer um dramaturgo espanhol, já consagrado em seu país e na Europa, quanto os admiradores do ator Osmar Prado, em especial, e os de Maurício Machado (que aqui esteve no ano passado, com Um beijo em Franz Kafka), encontrarem seus intérpretes. O veneno do teatro, contudo, não é nem um texto nem um espetáculo para grande público.
A curta temporada de O veneno do teatro, do espanhol Rodolf Sirera, não só permitiu ao público conhecer um dramaturgo espanhol, já consagrado em seu país e na Europa, quanto os admiradores do ator Osmar Prado, em especial, e os de Maurício Machado (que aqui esteve no ano passado, com Um beijo em Franz Kafka), encontrarem seus intérpretes. O veneno do teatro, contudo, não é nem um texto nem um espetáculo para grande público.
O jogo que aparece ao longo do enredo, inteligentemente traduzido no cenário de Kleber Montanheiro (sobretudo no chão, que lembra o xadrez), já começa na ambiguidade do título: o teatro é um veneno? Por extensão, a arte é um veneno? Ou, como sabemos depois, o veneno é real e, embora relacionado com o texto de teatro que o personagem do ator (Maurício) é levado a representar pelo Conde (Osmar), não tem uma relação direta, apenas metafórica.
Por trás da situação-limite proposta pelo dramaturgo, temos um debate que rememora algumas teorias sobre dramaturgia, desde a perspectiva mimética (da imitação) de Aristóteles, passando pela perspectiva de Diderot, expressa em Discurso sobre a poesia dramática. Mas o que, de fato, interessa a Sirera é bem mais prosaico: é o fato de que as pessoas julgam os demais a partir das aparências, gostam de sobressair-se a partir destas representações e, do mesmo modo, a partir delas, participam de um jogo de poder que nada mais é que um teatro social.
Não é por acaso que, quando da chegada do ator, convidado pelo conde, justamente quando se abre a cortina para nós, espectadores, o primeiro encontra-se irritado porque está há quase uma hora à espera do nobre. Ele se considera um ator reconhecido e famoso, não tolera o desrespeito dos demais, e assim se expressa ao criado, que lhe serve uma bebida. Quando este criado começa a indagar-lhe sobre o trabalho do ator, ainda que surpreendido (e explicitando tal surpresa, afinal, um criado...), o que se está a preparar é a armadilha que, logo depois, apanhará o comediante. Menosprezando o criado, gabando-se de sua qualificação, o artista fica estupefato e, depois, se humilha quando este criado se revela o conde.
O texto é demasiadamente retórico, talvez, para muitos de nós, entre os quais me incluo, humildemente. Seja como for, o enredo depois avança mais rapidamente, quando o conde revela o motivo de ter convidado o ator a sua casa e o desafia/convida/obriga a fazer a leitura - interpretando-a - do trecho de uma peça de teatro que teria escrito e que queria testar. Diante da promessa de um pagamento a que não está acostumado (o que subjetivamente revela que este ator, afinal, nem é tão bom assim e nem é tão reconhecido e famoso, sendo mal pago), o artista cede. Depois, as coisas se precipitam e o enredo se completa de uma forma um pouco absurda mas não impossível. É quando Sirera rompe com a tradição do chamado teatro bem feito francês e vincula-se à dramaturgia da peça de realismo fantástico mais contemporânea.
O que é mais fascinante (mas isso depende do espectador disposto a jogar este jogo) é o desenvolvimento do jogo interpretativo, porque cada ator interpreta simultaneamente a si mesmo e a um fantasma, a um outro: Osmar Prado é um criado e depois o conde; Maurício Machado é um ator vaidoso e depois desesperado e aterrorizado. No caso de Maurício, ele ainda propiciará duas diferentes interpretações para um texto de Xenofonte, a respeito do suicídio de Sócrates... Enfim, o espectador, de fato, é convidado a um jogo. Paciência, sutileza, mas sobretudo interpretações magistrais, medidas, meticulosa e milimetricamente medidas. Não se trata de um espetáculo que proporcione prazer emocional, mas sim, um prazer racional, frio, metódico, para um espectador que seja capaz de reconhecer e se comprazer com este tipo de exercício. Osmar Prado mostra que está absolutamente inteiro e dono de todas as suas possibilidades de intérprete. Maurício Machado se coloca a seu lado, no mesmo patamar, mas a dramaturgia, de certo modo, ajuda-o a se sobressair. Seja como for, temos um espetáculo incomum, inesperado, mas que mostra todas as possibilidades de uma dramaturgia bem idealizada e de um diretor que sabe transformar em espetáculo esta ideia.
 

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