{{channel}}
Acervo digitalizado
A inauguração, na noite da sexta feira retrasada, do Acervo Sônia Duro, guardado ao longo de muitos anos no espaço do Teatro de Arena, foi um importante momento para as artes cênicas do Rio Grande do Sul. E por vários motivos, o menor dos quais seja a documentação a respeito das atividades da censura junto às artes, em geral, e às artes cênicas, em especial. Explico: o material disponibilizado, ao que parece, foi cedido originalmente, em sua grande maioria, pela Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), então sob a diligente coordenação de Aron Menda. A maior parte dos textos traz um carimbo, logo na primeira página, que explica ser aquela liberação do texto exclusivamente dirigida para apresentação à censura. Para quem conhece o processo então vigente (e na questão dos direitos autorais ainda em vigor), deve-se entender o seguinte:
- O grupo interessado em transformar em espetáculo um determinado texto, dirigia-se à SBAT para conseguir um texto original a ser estudado e apresentado preliminarmente à Censura;
- É preciso lembrar que o processo censorial de então desdobrava-se em duas etapas: na primeira, a censura examinava o texto, liberando-o totalmente ou com cortes, ou vetando-o, pura e simplesmente;
- Se liberado, o grupo podia iniciar seus ensaios; quando o espetáculo estivesse preparado para a estreia, um ou mais representantes da censura compareceriam a um espetáculo realizado em teatro vazio, onde a encenação ocorria, de preferência com cenários, iluminação e figurinos; de novo, agora o espetáculo era liberado totalmente ou com cortes (se no texto) ou recomendações de modificações de marcações (se na maneira de representar) ou proibido, pura e simplesmente.
Esta dupla censura resultava numa terceira e mais eficiente censura, de que sou testemunha ao menos num episódio, o da peça Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Liberado o texto, a empresa produtora de Fernanda Montenegro e Fernando Torres providenciaram a produção do espetáculo. Às vésperas da estreia, houve o ensaio para a liberação do espetáculo que, então, foi proibido. A empresa faliu.
Esta censura era a mais ferrenha e covarde, porque a mais eficiente. E isso explica porque boa parte dos textos dos anos 1970 continham apenas dois personagens, quando não eram monólogos.
O Acervo Sonia Duro, agora digitalizado, antes de mais nada mostra a diligência da querida produtora em guardar todo este material, apesar das precárias condições de umidade do espaço teatral. Aliás, não é por nada que uma parte do material digitalizado, embora preservado, agora, tem legibilidade bastante dificultada.
Outra questão a se considerar é que, por serem estas cópias, em boa parte, aquela cópia devia ser uma primeira versão, aquela entregue pela SBAT. Então, todos os originais possuem o carimbo da SBAT, mas nem todos possuem o carimbo do escritório ou representante da Censura Federal em Porto Alegre. E apenas uns poucos apresentam os cortes de texto obrigados pela censura. Em síntese, o acervo é menos um documento de censura (ainda que evidencie, pelo carimbo, aquela obrigatoriedade) do que serve para que o estudioso possa avaliar quais os textos que eram então propostos a montagens (no caso de autores locais, nacionais ou estrangeiros), quais os autores apresentados etc. Neste caso, ganha relevo podermos identificar quais os "dramaturgos" da época: isso nos permite aquilatar os temas de interesse potencial, os grupos dramáticos em funcionamento, os critérios (haveria?) da censura na proibição ou no corte (por exemplo: palavrões, referências à política imediata, referências a drogas, críticas a autoridades estrangeiras etc).
O trabalho realizado pela equipe da Sedac e do Teatro de Arena, neste sentido, é profundamente importante e amplia o que, neste mesmo sentido, já há alguns anos, a Escola de Comunicação e Artes da USP realizou, e a cujo lançamento também tive a oportunidade de assistir.
O interessado pode acessar o link acervos.cultura.rs.gov.br e se abismar com a estupidez censória, ou divertir-se e ilustrar-se com o material de dramaturgia então proposto enquanto potencial espetáculo.