Às vésperas de completar 12 anos, a Lei nº 11.888/2008 que garante assistência técnica pública e gratuita para construção ou reforma de moradias de pessoas com baixa renda começa a ganhar forma no Rio Grande do Sul com projetos fomentados pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS). Com foco na adaptação de espaços já existentes, as propostas surgem como uma resposta ao déficit qualitativo das habitações, problema antigo e evidenciado - até mesmo agravado - pela pandemia de Covid-19.
A ideia vem sendo formatada há mais de um ano, com objetivo de vincular a melhoria da habitação com a saúde dos seus moradores, explica o arquiteto e urbanista Paulo Henrique Soares, coordenador institucional do Gabinete Assistência Técnica e gerente de Planejamento do CAU/RS. Esse é o foco da iniciativa Casa Saudável - o piloto deste trabalho está em andamento em Santa Rosa.
Mas a pandemia acendeu outro alerta para o Conselho, sobre como atender a orientação das autoridades de saúde para permanecer em casa e higienizar as mãos com frequência se ao menos 11 mil domicílios não têm banheiro no Rio Grande do Sul (número identificado pelo Censo de 2010 do IBGE).
Surgiu assim, no início da quarentena, o projeto Nenhuma Casa Sem Banheiro, com trabalho em andamento em cidades como Santa Cruz do Sul, Lajeado e Caxias do Sul. "Entendemos que seria lógico atender às questões sanitárias nesse momento. Já é uma resposta à pandemia", avalia Soares.
Em ambos projetos a parceria envolve as prefeituras e associações profissionais ou instituições de ensino. Os materiais serão fornecidos pela prefeitura ou por doações de empresas e pessoas da comunidade, já as obras serão feitas em formato de mutirão. Para a população, o atendimento prestado por arquitetos e urbanistas não tem custo. Nos pilotos, o CAU/RS está bancando o trabalho destes profissionais "para demonstrar a possibilidade desse programa ser implantado", explica Soares. Depois, ficará a cargo do poder público.
Embora exista há mais de uma década, a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (Athis) ainda é pouco conhecida dos gestores municipais. E, embora a lei diga que cabe à União o apoio financeiro a estados e municípios para garantir esse acesso às famílias de baixa renda, isso não acontece na prática.
Mas, diferente de outras políticas habitacionais que implicam na construção de novas unidades - e da infraestrutura urbana que as acompanha -, Soares sustenta que a Athis é fácil de ser adotada pelos gestores locais. "Tem custo baixo para o município e o efeito é grande", defende. Para 2021, o plano do Conselho é capacitar prefeituras e seguir fomentando a implantação desses projetos.
Projeto Casa Saudável tem início pelo município de Santa Rosa
"Pioneiro é assim, tem vontade e não tem caminho", brinca Luís Antônio Benvegnú, vice-prefeito de Santa Rosa, primeira cidade a trabalhar com o projeto Casa Saudável do CAU/RS. Médico epidemiologista, ele conta que defendeu a adesão à proposta do Conselho por saber da importância da moradia para a saúde das pessoas. Sem modelo no Estado, o município está criando uma metodologia que poderá depois ser adaptada por quem aderir ao projeto a partir de agora.
Para a primeira etapa, 17 famílias foram selecionadas para receber a intervenção. Como a pandemia restringiu as atividades durante boa parte do ano, as obras ainda estão em fase inicial e devem seguir até fevereiro. Um dos critérios para escolha é ter ao menos uma pessoa idosa na família.
Com uma visão integrada das políticas públicas, a prefeitura de Santa Rosa optou por unir o projeto às Equipes de Saúde da Família. "Percebemos que tem sucesso e somos bem recebidos por causa dos agentes de saúde, por estarem lá no dia a dia", avalia a arquiteta e urbanista Fabiani Marciniak, que integra a equipe de quatro profissionais do projeto Casa Saudável.
Banheiros são construídos em Santa Cruz do Sul
Em Santa Cruz do Sul, o projeto Nenhuma Casa Sem Banheiro está na fase inicial. Foram selecionadas nove famílias atendidas por três arquitetos que visitam as casas e elaboram um projeto personalizado, com soluções que vão desde a parte estrutural até o destino dos efluentes. O arquiteto e urbanista Carlos Fabiano Pitzer, conselheiro do CAU/RS e um dos articuladores do projeto no município, explica que a estrutura sanitária é a parte mais cara da construção de uma casa e acaba sendo preterida em construções de famílias de mais baixa renda. No projeto em Santa Cruz, os integrantes identificaram que a casa sem banheiro muitas vezes divide o lote com outra residência que tem, e o uso é compartilhado. Mas o acesso não afasta complicações, além da evidente falta de autonomia de uma situação assim. Pitzer cita o caso de uma casa que receberá intervenção do vizinho, em que um dos moradores é cadeirante e sempre depende de ajuda para chegar ao banheiro, já que o acesso é por escada.
Pesquisa mostra campo para atuação profissional
Pesquisa nacional promovida pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo e realizada pelo Instituto Datafolha em 2015 revela que, da parcela da população que já construiu ou reformou um imóvel, 85% fez o serviço por conta própria ou com pedreiros e mestres de obras, amigos e parentes. Somente 15% contratou um arquiteto ou urbanista. O presidente do CAU/RS, Tiago Holzmann da Silva, aponta dois fatores para isso: um cultural, já que muitas pessoas relutam em identificar o trabalho técnico como essencial, e outro econômico, por falta de recursos para contratar um profissional. "Além do ponto de vista social da arquitetura, iniciativas de assistência técnica também têm importância de abertura de mercado de trabalho para o profissional", explica. Para ele, iniciativas como a Athis são a "universalização do acesso de toda a sociedade à arquitetura".
Banco de materiais pode auxiliar obras
Além de ser uma das primeiras cidades a aderir ao projeto Nenhuma Casa sem Banheiro, Santa Cruz do Sul também é pioneira na criação de um banco de materiais de construção que serão usados em obras para atendimento da população de baixa renda.
Pitzer lembra que a sobra de materiais é comum em obras, especialmente aquelas que não contam com o acompanhamento de um profissional responsável. Em muitos casos, a sobra não tem mais utilidade para quem a comprou, porém a quantidade é muito pequena para ser devolvida à loja.
Em casos assim, a prefeitura se responsabiliza por recolher, armazenar e destinar para casos como o do projeto em parceria com o CAU/RS. Sistema semelhante é adotado em um “banco de móveis”, que se abastece de doações. Nestes casos, o custo para o município se reduz a fazer a gestão, e essa é também uma forma de envolver a comunidade com os projetos de interesse social.
Concursos
Parte do esforço do Conselho em fomentar a assistência técnica para habitação de interesse social se traduziu na realização de concursos de projetos que podem ser adotados em iniciativas futuras dos projetos Casa Saudável e Nenhuma Casa sem Banheiro. Confira aqui mais informações sobre os concursos.
Athis e a garantia de direitos
A Constituição Federal de 1988 tem como obrigação do Estado e direito do cidadão serviços como saúde, educação e justiça. Em cada um destes casos é fácil identificar a atuação do Estado: SUS para a saúde, escolas públicas para a educação, Defensoria Pública para atendimento de justiça às pessoas sem condição financeira.
Com a habitação é o mesmo, defende Soares. “A Athis é o SUS da arquitetura”, diz, parafraseando o arquiteto e urbanista Clóvis Ilgenfritz da Silva, idealizador da proposta que culminou na lei da Athis.
O direito social à moradia está previsto no artigo 6º da Constituição, é competência do poder público e pode ser prestado por meio da assistência técnica, conforme a Lei Nº 11.888/2008.
Dia nacional do arquiteto e da arquiteta
Em 15 de dezembro se comemora o dia do arquiteto e urbanista. A data foi escolhida para o início das atividades do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, em 2011, para coincidir com o dia do nascimento do arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, detentor do primeiro registro da profissão no Brasil. A data também está prevista na Lei 13.627/2018.