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Bruna Suptitz

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Publicada em 29 de Abril de 2024 às 20:53

Fim da permissão a carrinheiros volta à pauta em Porto Alegre

Carrinho puxado por catador é chamado de veículo de tração humana

Carrinho puxado por catador é chamado de veículo de tração humana

TÂNIA MEINERZ/JC
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"A gente tem que trabalhar para ganhar o nosso", diz o catador Marcos Correa de Souza, sem parar para conversar. Ele caminhava a passos largos na manhã de sábado, dia 27 de abril, pela Rua Voluntários da Pátria, no Centro de Porto Alegre, em busca de latinhas de alumínio e garrafas pet - esses dois são hoje os materiais recicláveis que mais valem para venda.
"A gente tem que trabalhar para ganhar o nosso", diz o catador Marcos Correa de Souza, sem parar para conversar. Ele caminhava a passos largos na manhã de sábado, dia 27 de abril, pela Rua Voluntários da Pátria, no Centro de Porto Alegre, em busca de latinhas de alumínio e garrafas pet - esses dois são hoje os materiais recicláveis que mais valem para venda.
Era o mesmo que buscava José Clodomiro dos Santos Nunes, mas em outro ponto do bairro, na Rua Washington Luiz. Ele passa as noites abrigado debaixo do camelódromo; de dia, empurra um carrinho de supermercado com alguns pertences e com os recicláveis que consegue tirar dos grandes contêineres de lixo que adentra. "Pra a comida ainda dá, mas não pra viver", diz sobre o que ganha com a venda do material que recolhe.
Os dois sabem que uma lei antiga ameaça a atividade que exercem. Em 2008, a Câmara de Porto Alegre aprovou a "retirada gradual de veículos de tração animal e veículos de tração humana" das ruas da cidade. A medida foi regulamentada por decreto em 2010.
O prazo limite para implementar a proibição era de oito anos e foi cumprido no caso das carroças puxadas por cavalos, que há quase dez anos não dividem com os carros espaço nas ruas e avenidas da Capital. Mas, no caso dos carrinheiros - aqueles que puxam ou empurram seus carrinhos -, a vigência da lei vem sendo prorrogada desde então.
É mais um adiamento neste prazo que grupos de apoio aos catadores de rua buscam. Pela previsão vigente, a proibição passará a valer em dois meses, no dia 30 de junho. À coluna, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social informa que a possibilidade de uma nova prorrogação está sendo analisada e ainda não se tem uma decisão final. Paralelo a isso, há um movimento que pede a revogação da lei no que diz respeito aos carrinheiros, para que os catadores não sejam criminalizados.
De autoria do então vereador e atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), a Lei nº 10.531/2008 tratava inicialmente do fim da circulação de carroças puxadas por cavalos e tinha como pano de fundo a segurança no trânsito e o bem-estar animal, além de uma proposta para inserir os catadores no mercado de trabalho formal.
Com o projeto de Melo já em plenário, em 16 de junho de 2008, uma emenda de autoria dos ex-vereadores Beto Moesch (PP) e Haroldo de Souza (MDB) estendeu a proibição também aos veículos de tração humana - os carrinhos. O debate sobre este grupo, no entanto, não foi feito previamente nem com a categoria, nem com a sociedade.
A justificativa para retirar os catadores das ruas tem cunho social. Para isso foi criado o programa Todos Somos Porto Alegre, que atuou até 2016. Mas a prática não refletiu a intenção. Viver da coleta e venda de materiais recicláveis é o meio de sobrevivência para muitas pessoas, especialmente para aquelas que enfrentam dificuldade para conseguir um emprego, seja pela falta de escolaridade, pela aparência, por serem usuários de drogas ou por terem antecedentes criminais - preencher algum desses quesitos já representa uma barreira.
Uma forma apontada para qualificar essa função é incluir os catadores autônomos, de rua, na realização da coleta seletiva solidária, defende o "Pimp My Carroça", organização da sociedade civil que atua em todo o País na promoção da visibilidade e remuneração justa para as catadoras e os catadores de materiais recicláveis informais. Levantamento da organização aponta que nenhuma capital além de Porto Alegre criminaliza por lei o trabalho da catação nas ruas.
Pelo movimento Coleta Seletiva Viva POA é reivindicada a melhoria nas condições de trabalho nas cooperativas de catadores, com contrato prevendo a remuneração pelos serviços prestados - uma maneira de atrair para os galpões quem hoje está nas ruas - e também com a implementação da coleta feita por catadores.

Sobrevivência vem da venda das embalagens retiradas do lixo

José Nunes busca plástico e latinhas dentro de contêineres de lixo

José Nunes busca plástico e latinhas dentro de contêineres de lixo

Bruna Suptitz/ESPECIAL/JC
José Clodomiro dos Santos Nunes tem 48 anos e não sabe com precisão há quanto tempo trabalha como catador, só sabe que "faz tempo". Hoje empurra um carrinho de supermercado porque perdeu num acidente o carrinho maior, "aquele que tem pneu de moto ou de carro", explica. Também sem saber precisar quando aconteceu, Nunes lembra que foi atingido por um carro e teve que ser levado ao hospital. O carrinho se perdeu, junto com o material coletado, seus pertences e documentos. Uma assistente social está auxiliando a refazer a documentação. Questionado sobre a lei que proíbe catadores com carrinhos na rua, Nunes demonstra medo de ter que parar de trabalhar. "Nós vamos morrer de fome? É pra comer, pra manter", sustenta.
Outro catador, que pede para não ser identificado, também coleta para a sobrevivência diária. "Trabalho com meta", explica: precisa material suficiente para render R$ 20,00 de manhã - é o que paga de parcela para adquirir o carrinho que usa - e R$ 20,00 à tarde, para pagar a pernoite em uma pensão. A alimentação é o que ganha na rua e o dinheiro que sobra vira reserva para os dias que a chuva ou a falta de material derruba a renda. Quando não atinge a meta, prioriza pagar pelo carrinho, e acaba dormindo na rua.
O estigma social acompanha quem vive de revirar lixo para tirar o seu sustento. Para Carlos Thadeu de Oliveira, do Pimp My Carroça, a lei de Porto Alegre "é uma política higienista que institucionaliza o racismo ambiental, marginalizando ainda mais pessoas em situação de vulnerabilidade que obtêm sua renda da reciclagem e limpeza urbana". Nunes conhece essa sensação. Ele tem baixa estatura e precisa escalar os contêineres para tirar lá de dentro o que nem deveria ter entrado: destinado aos resíduos orgânicos e ao rejeito, é comum que tenham também recicláveis secos, principalmente plástico e papelão. Não fossem os catadores, esse material não seria reciclado, pois dali iriam para o aterro sanitário. Mas Nunes lamenta que o vandalismo de alguns - com os roubos de tampas de contêineres, fios e outros materiais - tenha marcado negativamente a imagem dos catadores.
O trabalho realizado, além de ajudar a preservar o meio ambiente, é reconhecido pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO 5192-05). Na descrição de "catador de material reciclável", no site do Ministério do Trabalho e Emprego, consta que catadores "são responsáveis por coletar material reciclável e reaproveitável, vender material coletado, selecionar material coletado, preparar o material para expedição, realizar manutenção do ambiente e equipamentos de trabalho, divulgar o trabalho de reciclagem, administrar o trabalho e trabalhar com segurança".
 

Catadores e consórcios municipais

No dia 10 de maio, sexta-feira da semana que vem, a Frente Parlamentar das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis do RS, na Assembleia Legislativa, vai promover o debate "O espaço das Catadoras e Catadores de matérias recicláveis nos consórcios regionais de gestão de resíduos sólidos". Será no Plenarinho, das 14h às 18h.

O risco dos abrigos

O fogo que consumiu a pousada Garoa na madrugada de sexta-feira, 26, em Porto Alegre, vitimou pessoas em situação de rua, abrigadas por uma política de acolhimento da prefeitura. Geralmente essas pessoas têm sua fonte de renda na coleta e venda de materiais recicláveis.
Dormir em abrigos é alternativa ao frio e ao perigo das ruas, mas nem sempre representa segurança. Um catador, que pede para não ser identificado, costuma passar a noite em uma pousada na região do 4º Distrito e disse à coluna que a condição é semelhante a do local incendiado. A diferença é não ter contrato com o poder público.

Série Reciclagem

Esta série de reportagens é realizada com apoio da Bolsa de Produção Jornalística sobre Reciclagem Inclusiva 2023, concedida pela Fundação Gabo em parceria com a plataforma Latitud R. Confira a seguir os
conteúdos.
14/02 - Cooperativas de catadores garantem reciclagem de resíduos
06/03 - Catadores só recebem pela venda do resíduo
20/03 - Os números da reciclagem em Porto Alegre
03/04 - O que é a “Coleta seletiva solidária”
17/04 - Manter estrutura é desafio para cooperativas
Hoje - Situação dos carrinheiros e catadores de rua em Porto Alegre
Próxima reportagem, dia 15/05 - Dificuldades e caminhos para a reciclagem de plásticos

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