Marisa dos Santos da Roza não sabe se seu nome e sobrenome são escritos com “s” ou com “z”. “Sou analfabeta”, respondeu quando perguntada. “Meu neto é quem sabe”. Josué da Roza Moreira, o neto, responde: Marisa com “s”, Roza com “z”.
Com 71 anos, ela é a matriarca da
Cooperativa de Trabalho Socioambiental Mãos Unidas,
na Zona Norte de Porto Alegre, identificada como “Aterro Norte” no controle da prefeitura. Na brincadeira dos netos, Marisa tem mais de 140 anos: como nasceu em um dia, mas foi registrada em outro, é como se fizesse dois aniversários no ano. Ela ri da brincadeira.
Atualmente, além da matriarca, outras 10 pessoas tiram sua fonte de renda do trabalho no galpão da cooperativa – são sete mulheres e quatro homens. Seis são da família da Marisa: a filha Ângela Maria, as netas Ana Cláudia, Kimberli e Rafaela, o neto Josué, que é presidente da cooperativa, e a esposa dele, Gabriele.
A Cooperativa Mãos Unidas é uma das 17
Unidades de Triagem contratadas pela prefeitura para receber o resíduo reciclável da coleta seletiva – é o
lixo seco que cada pessoa gera na sua casa e coloca em sacos na rua para os garis recolherem e jogarem para cima do caminhão. Outras três cooperativas também recebem cargas com material para a triagem, mas ainda não têm contrato formalizado com o poder público. Trabalham hoje nessas cooperativas cerca de 330 catadores.
Marisa está no galpão desde o início das atividades, no começo da década de 1990, quando o lixão ali perto foi desativado e se transformou em aterro – daí o nome pelo qual é conhecido o lugar. Para acomodar as pessoas que tiravam da montanha de lixo a sua renda (Marisa era uma delas), a prefeitura construiu um galpão para depositar o lixo seco que começou a recolher das ruas naquela mesma época. O modelo foi replicado em outras áreas da cidade.
Hoje aposentada, ela poderia passar as manhãs e tardes descansando e cuidando dos tantos cachorros que acolhe em sua casa. Em vez disso, vai de segunda a sexta-feira a pé até a cooperativa, onde separa, na mão, o material que pode ser reciclado daquele que é rejeito – e que, aliás,
nem deveria estar ali. Da Vila Dique, onde vive, até a esquina da rua Sérgio Jungblut Dieterich com a avenida Severo Dullius, onde fica o galpão, são mais de 30 minutos de caminhada.
“Eu já acostumei a trabalhar, não adianta”, justifica. Mas a verdade é que ela não pode parar, já que considera o valor da aposentadoria “muito pouco”. Também é pouco o que ganha depois de um mês separando o material reciclável para a venda. Ainda assim, diz que “dá pra quebrar um galho”, mesmo com a renda despencando no último ano.
Incontáveis problemas bateram à porta da Mãos Unidas em 2023. O impacto das tempestades que atingiram o Sul do Brasil na primavera se soma ao resultado da obra da avenida vizinha ao terreno do galpão e que, elevada, fez com que a água da chuva acumulasse no pátio da cooperativa sem ter para onde escoar. O conserto do escoamento chegou somente no início de 2024. Essas situações paralisaram a produção por vários dias no fim do ano passado e muitos resíduos estragaram.
Com a produção prejudicada e menos material para a venda, reduziu o valor da partilha (o que é pago a cada um dos cooperados). Até o início da pandemia, a renda era próxima ao salário mínimo vigente. Mas caiu para bem menos da metade: R$ 500 foi o que cada um recebeu por três semanas trabalhadas em dezembro de 2023, do início do mês até o Natal. O salário mínimo no Brasil é atualmente R$ 1.412,00.
Para compensar as perdas e garantir uma renda mínima, a prefeitura criou um auxílio emergencial a ser pago aos catadores das cooperativas de Porto Alegre, no valor de R$ 670 por pessoa, pelo período de seis meses e podendo se estender até o fim do ano. Um alívio, sem dúvida, mas incerto: aprovado no ano passado, foi paga a primeira parcela em janeiro, mas a segunda esbarrou na burocracia do poder público e chegou com atraso.
Ainda assim, um recurso extraordinário não é suficiente para resolver a complexa equação da renda dos catadores de materiais recicláveis: hoje, em Porto Alegre,
não há pagamento pelo serviço prestado (
o serviço ambiental), que é a triagem dos materiais e o “desvio de aterro”, que encaminha para a reciclagem tudo o que pode ser aproveitado. A remuneração da categoria depende diretamente da venda daquilo que se consegue no lixo.
A demanda da remuneração pelo serviço prestado já foi formalizada ao poder público e entregue ao prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo (MDB), junto com a proposta de um novo contrato a ser firmado entre a prefeitura e as cooperativas. O assunto será tratado na semana que vem em uma reunião de mediação no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, com o Fórum de Catadores e o poder público municipal à mesa.
Marisa segue trabalhando enquanto esse debate é travado pelos representantes da sua categoria. Para ela “é melhor do que estar em casa parada”.
Para chegar até nós, muitos produtos passam por um processo de transformação e por uma cadeia logística: extração da matéria prima, fabricação, distribuição, venda, entrega ao consumidor. Depois que descartamos um material para a coleta seletiva, o gari recolhe, coloca no caminhão e, no caso de Porto Alegre, leva até uma cooperativa de catadores – as Unidades de Triagem.
Nas cooperativas, o trabalho dos catadores é de abrir as sacolas de lixo, separar os materiais por tipo e encaminhar para a indústria que fará a transformação em um novo produto. É por realizar este trabalho que os catadores demandam remuneração, que já é praticada em outros municípios gaúchos.
Além da prestação de serviço ao poder público, este é também um serviço ambiental em benefício de toda a sociedade. No caso dos catadores, o lixo que encaminham para a reciclagem deixa de sujar o chão, de poluir o solo e as águas.
Esta série de reportagens é realizada com apoio da Bolsa de Produção Jornalística sobre Reciclagem Inclusiva 2023, concedida pela
Fundação Gabo em parceria com a plataforma
Latitud R.