O "abandono do planejamento urbano e do sistema de gestão" é a principal preocupação do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS) com a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre, revelou em entrevista ao Jornal do Comércio Clarice Misoczky Oliveira, co-presidenta da seccional da entidade no Rio Grande do Sul. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio ela questiona a falta de dados atualizados, por parte da prefeitura e da consultoria contratada, que sirvam de base para a elaboração do projeto de lei e para a aposta que se quer fazer no monitoramento da cidade. E também projeta que a tramitação da revisão na Câmara, que deve ter início no próximo ano, será uma boa oportunidade para o debate: "se a população de Porto Alegre vai prestar mais atenção para as questões da cidade por ser um momento de ano eleitoral, pode ser positivo".
Jornal do Comércio – Como o IAB tem se relacionado com a prefeitura, a entidade foi procurada para fornecer subsídio técnico ou algum apoio ao processo de revisão do Plano Diretor?
Clarice Misoczky Oliveira – Temos representação sempre nas reuniões do Conselho, também nos GTs dos eixos temáticos que têm sido realizados pela prefeitura, participamos da conferência, do seminário e estamos preparados para participar do próximo seminário. Em todas as etapas de processos participativos que estão sendo promovidas pela gestão Municipal o IAB está comparecendo. Tivemos duas reuniões com técnicos da prefeitura, uma primeira para alinhar que o IAB está disposto e por isso empenha o seu tempo para participar do debate da revisão do plano diretor. E na sequência fizemos uma reunião que foi composta por IAB, AsBea e CAU com a Ernst & Young, empresa consultora. Naquele momento queríamos conhecer a metodologia que seria aplicada e saímos de lá com a promessa de uma nova reunião, mas acabou não acontecendo. Na ocasião da conferência contribuímos com nomes para participar das palestras do primeiro dia, levando sempre que possível e de acordo com as etapas que estão acontecendo o posicionamento da entidade com um olhar atento para contribuir com o processo.
JC – Da reunião com a Ernst & Young foi pedida informação sobre a metodologia de trabalho, sem retorno. O IAB está esperando ou vai ter algum novo pedido?
Clarice – Não houve (retorno), fizemos um pedido e ele não foi atendido. Agora recebemos o relatório. Acredito que a ideia de contribuir naquele momento, enquanto o trabalho não havia sido começado, era exatamente de poder levar a propostas sobre a metodologia. Uma vez a metodologia já aplicada resta avaliar e compreender o que foi desenvolvido. É um documento de mais de 700 páginas que traz dados bastante defasados, muitas vezes as referências tem algumas fontes que não são claras. As referências constam junto a mapas, mas não estão completas no final do documento. Então, se tem alguns dados novos produzidos pela Ernst & Young, isso não fica claro.
JC – O próprio documento diz que, dos dados solicitados à prefeitura, nem todos foram recebidos. Faltou alguma entrega…
Clarice – Acredito que sim. É um trabalho importante reunir os dados de todas as diferentes secretarias, porque às vezes são muito isolados. Mas há muitos dados antigos, de alguns as referências são notícias da imprensa. Os do IBGE são de 2010, por óbvio, pois até a entrega (do relatório) não tinha acontecido a última divulgação do censo. Foram feitas projeções, que é um exercício, mas acabaram não expressando a realidade. A projeção da Ernst & Young previa um pequeno aumento populacional, mas tivemos uma queda populacional, previa um certo aumento de imóveis (vazios) e o aumento foi maior do que o estimado. Mas que bom que temos dados novos ainda em tempo. Em termos gerais, a nossa avaliação do relatório é que ele é um primeiro momento de um apanhado de informações, informações muito descasadas no tempo e sem um levantamento no território. Não tem, por exemplo, um levantamento das habitações nos assentamentos informais. Para ter o diagnóstico de Porto Alegre, para efeitos de proposição de como imaginamos o futuro da cidade, precisamos entender a cidade real de hoje. E os dados, apesar da extensão da quantidade, não refletem a Porto Alegre de 2023.
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JC – A revisão começa em 2019, passa por um hiato, quando tem algumas alterações pontuais, foi retomada no ano passado e logo estará encerrando a primeira etapa, de leitura da cidade, que implicaria ter essas informações. Pelo que você está trazendo, os dados são defasados e isso prejudica o diagnóstico, isso?
Clarice – É, esse é o caminho. Temos alguma informação, o relatório da Ernst & Young traz uma contribuição sim de poder juntar tudo num documento, mas são dados defasados de informações muito desencontradas, que não têm uma síntese. O documento não apresenta uma síntese, um retrato do que é a Porto Alegre de hoje. E o relatório é apresentado por 16 temas, sendo que a revisão do plano diretor de Porto Alegre está sendo tratada em sete eixos. Então não temos o diagnóstico por eixos. E isso traz dificuldade para a racionalidade do planejamento urbano. Seria o momento de ser apresentado, se foi feita a escolha por eixos, é necessário um exercício de síntese de todos os dados que o compõem.
JC – Esses eixos foram definidos a partir do que está previsto no Plano Diretor?
Clarice – Não. Esses são os eixos que foram estipulados para essa nova revisão, antes do início do trabalho da Ernst & Young, pela prefeitura .
JC – Faltou comunicação?
Clarice – Não acredito que seja falta de comunicação, porque a Ernst & Young conhece os eixos, a conferência de Diagnóstico foi realizada por eixos as palestras, as oficinas e os resultados foram elaborados a partir de eixos. Então por que não termos um relatório com síntese a partir dos mesmos eixos? Como que a gente vai fazer esse diálogo? O seminário ainda é uma oportunidade para a prefeitura apresentar o trabalho, talvez venha aí uma organização pelos eixos.
JC – O que o IAB espera dessa revisão do Plano Diretor? Tem algum tema chave que a entidade acredita que não deva deixar de ser tratado?
Clarice – Sabemos que tem outras entidades já colocando as suas expectativas, levando as suas demandas para a prefeitura. Nós acreditamos que seria interessante termos um diagnóstico antes de elaborar sugestões propositivas para a revisão do Plano Diretor. Ainda que esse diagnóstico não veio completo, não veio como o esperado, mas ele em alguns momentos reforça ou evidencia talvez a desatenção para alguns temas como da questão da habitação social, por exemplo. A Ernst & Young declara no relatório que não foi a campo levantar dados atualizados. É preciso ressaltar que é uma consultoria contratada por R$ 6,5 milhões com a justificativa de que Porto Alegre não tem dados atualizados. Então, a frustração é exatamente por essa expectativa de que, pelo montante dos recursos empregados e pela consciência do Poder Executivo da ausência desses dados, teríamos essas respostas agora. Mas a ausência de algumas respostas revela a desatenção para alguns temas. Tem-se debatido muito aumentar a densidade de liberar as alturas e tudo mais, inclusive liberar a densidade para além do que a infraestrutura pode comportar. Mas agora nós não sabemos se a infraestrutura comporta ou não.
JC – Questionei sobre a expectativa do que deveria ser atendido e você traz a percepção de que isso não está sendo atendido até o momento. Pensa que na segunda etapa, na elaboração da minuta questões como essa da habitação de interesse social ou do aproveitamento da infraestrutura poderão ser contempladas?
Clarice – A etapa de contemplar era a de diagnóstico, de leitura. Propostas se contemplam na etapa de propostas. É melhor fazer com atraso do que não fazer com certeza, mas isso prejudica o processo. E uma dificuldade também que percebemos nesse processo de diagnóstico é a conferência ter apresentado propostas, e não leituras da cidade. Nós participamos das reuniões de preparação em que se elaborariam perguntas para as oficinas referente ao eixo de gestão da cidade. Os presentes colocavam as suas sugestões e as perguntas saíam em redação no formato de que suscitaria uma proposição. Na ocasião eu e a Claudete (Simas, Acesso) colocamos que era um momento diagnóstico, não de propostas. Os relatos que tivemos das pessoas que participaram de todos os eixos na Conferência foi de que as perguntas conduziam os participantes a gerar propostas e não a gerar leituras. Então temos diferentes momentos do processo de leitura da cidade comprometidos. Também falamos da necessidade de realização das reuniões fora do horário de trabalho e em locais acessíveis, e isso foi atendido as reuniões passaram a ser à noite e o próximo seminário vai ser no sábado. Isso é muito bom. Mas temos preocupações referentes aos procedimentos mesmo, para que se possa concluir uma leitura da cidade.
JC – A prefeitura prevê menos de seis meses para a etapa de sistematização e proposta, que é quando, a partir dos dados coletados na leitura e unificando o que vier de proposta, se elabora a minuta da revisão. Você acredita que é tempo suficiente para isso, que se terá condição de fazer a construção nesse prazo?
Clarice – Inicialmente o projeto de consultoria com o Pnud era para que a consultoria exercesse a revisão do Plano Diretor em dois anos. Está se encurtando o prazo, talvez por isso não se tenha feito os levantamentos dos dados, porque para isso precisa de tempo, não só de recursos financeiros. Se não temos uma leitura da cidade e todas as propostas já estão sendo colocadas na mesa, acho que é um processo viciado. Se pulou ou se queimou uma etapa. Não vejo impossibilidade, mas, para um bom debate com a sociedade, para um processo participativo, a prefeitura tem feito muitas reuniões nos grupos de trabalho … O processo participativo é uma dificuldade, encontrar esse equilíbrio de horários, de quantidade de público alcançado, de quantidade de eventos. Mas uma quantidade excessiva de eventos pode afastar a participação social, ainda que seja muito bom a prefeitura ter aberto esses espaços de diálogo durante o processo.
JC – Você falou que há receio que seja uma condução talvez viciada…
Clarice – Já estamos vendo esses encaminhamentos. O prefeito tem o seu conceito de um Plano liberal. A forma do Plano de Porto Alegre vai mudar e vai mudar conforme os interesses do mercado, que é o que muitas pessoas já afirmaram nas entrevistas aqui. O IAB faz coro a esse entendimento porque é o diálogo que a gente tem visto, o setor da construção civil tradicionalmente tem força e atua debaixo da revisão do Plano Diretor, porque isso interfere diretamente seus setor. Mas atualmente eles pedem pela desregulamentação, pela liberação, para que não exista planejamento e que o mercado se ocupe de compreender o que é melhor para a cidade. E somado a isso temos a privatização/concessão dos espaços públicos. Temos liberdade individual sendo muito exaltada por esses setores e pela prefeitura, e essa liberdade individual transfere a responsabilidade para o indivíduo. Mas talvez seja demais exigir dos indivíduos o que é de interesse coletivo, talvez não seja justo. O Estado não pode se ausentar e o Plano Diretor é a lei máxima que regula a cidade. A prefeitura não pode abdicar do planejamento para os interesses do mercado. Até porque os efeitos sociais o aumento da desigualdade social e os efeitos nas famílias de baixa renda vai ser muito grande, porque a venda de solo criado em Porto Alegre, não tem sido usada para habitação, para prover infraestrutura nos lugares onde não tem. Hoje em dia é vem a ideia de que o solo criado vai trazer a infraestrutura para o local aonde ele está sendo vendido.
JC – O IAB tem feito algum acompanhamento e conversa junto aos vereadores? Tem expectativa de que possa se construir com a Câmara algo que não aconteceu durante o período do Executivo? Ou há receio de o que chegar lá ser muito modificado ou não ser nem debatido?
Clarice – A etapa do Legislativo compõe mais uma etapa de participação social através de representantes eleitos para o Legislativo. É uma etapa importante e merece atenção exatamente por esses fatores e por termos pessoas que representam os setores da sociedade. Na Câmara de Vereadores hoje a conjuntura política é muito desigual, a bancada de oposição é muito pequena, então o projeto que será enviado pelo Executivo dificilmente será negado. Mas existe sim a possibilidade de vereadores motivados por pautas do setor que representam inserir questões que não estejam contempladas. E aí vamos ver qual é a extensão dessas modificações, mas elas dificilmente acontecerão por parte da bancada de oposição e o cenário não é favorável.
JC – A prefeitura projeta o envio para o fim do ano, suspeito que possa ficar para o início do ano que vem, que é um ano eleitoral e sabemos que isso pode interferir nas forças externas e arrastar o processo. Há receio de que isso possa acontecer? Entende que isso pode ser prejudicial?
Clarice – O debate público é sempre bem-vindo. Então, se a população de Porto Alegre vai prestar mais atenção para as questões da cidade por ser um momento de ano eleitoral, pode ser positivo. Os ritos devem ser cumpridos e os tempos vão existir. Não sei se é exatamente prejudicial, acho que faz parte. Se atrair interesse por debate público, é positivo.
JC – Tem alguma outra questão que o IAB considera importante destacar?
Clarice – O que temos ouvido é que a prefeitura está apostando muito no monitoramento, que é possível liberar os índices construtivos porque vai existir isso. Mas o monitoramento só pode ser realizado após um planejamento. Como é que vai se definir os indicadores desse monitoramento, a partir de que critérios? Precisa ter um conceito de cidade. Qual é a visão de Porto Alegre para o futuro para ligar os sinais de alerta do monitoramento? Precisa ter os dados atualizados, porque o princípio do monitoramento é primeiro conhecer a realidade e ir monitorando essa realidade. Se não temos dados atualizados, a tarefa do monitoramento se torna impossível, se não temos planejamento também.
JC – Porto Alegre está neste caminho?
Clarice – É imprescindível para o planejamento as outras etapas, que são de gestão e monitoramento. Ainda não existia essa cultura em Porto Alegre, é desejável que exista, mas ela não pode vir sozinha. Hoje há tecnologia para isso e teve investimento, retomo de novo os R$ 6,5 milhões (para a consultoria Ernst & Young) e o contrato com o Pnud é maior, de R$ 10,9 milhões. Se esse sistema está sendo realizado e os dados estão sendo coletados, não estão vindo a público, e um processo de revisão de Plano Diretor precisa de transparência. Talvez essa seja uma das maiores preocupações que nós temos enquanto Instituto de Arquitetos, esse abandono do planejamento urbano e do sistema de gestão.
Entrevistas publicadas
Essa entrevista integra uma série realizada com as entidades que compõem o Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre, com a proposta de conhecer os interesses envolvidos no debate.
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