A Sociedade de Economia do Rio Grande do Sul (Socecon-RS) integra o Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre buscando equilibrar o debate sobre a cidade, mesmo acreditando que "a correlação de forças já está dada", conforme afirma o seu presidente, Mark Ramos Kuschick. Ainda assim, a entidade seguirá engajada no processo em andamento, como forma de posicionar o seu ponto de vista.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Kuschick questiona o tratamento diferenciado da prefeitura para diferentes atores que participam das atividades de revisão do Plano Diretor, aponta falhas no conselho que gere a política urbana da Capital e sustenta como uma "fragilidade intrínseca" a composição criada no colegiado que garante sempre o resultado favorável ao entendimento do município sobre os processos em votação.
Jornal do Comércio - A prefeitura recebeu de algumas entidades contribuições diretas sobre a revisão do Plano Diretor. A Sociedade de Economia tem canal com a prefeitura?
Mark Ramos Kuschick - Não, não é usual isso. A prefeitura não procede, porque não é casualidade, ela tem um entendimento mais patronal. Então, o vínculo com o Sinduscon é um vínculo familiar, e a Asbea tem também essa característica. Vimos como eles se comportam: dentro do seminário que ocorreu na Pucrs, a uma certa altura o representante do Sinduscon, nos grupos de trabalho, disse: "não, aqui houve uma formulação do grupo do desenvolvimento econômico que avançou muito nas suas sugestões, nós teremos condição numa conversa reservada para colocar o nosso posicionamento". Para eles isso é normal, não fere nenhum código de ética. A Asbea estudou com os seus sócios e falaram isso nas reuniões, que fizeram uma listagem de sugestões que querem que seja orientada. Mas não foi perguntado, por exemplo, para a Acesso (ONG Acesso - Cidadania e Direitos Humanos), "vocês têm uma lista? Felisberto, tu que é representante da RGP1…". Porque o Felisberto (Luisi, conselheiro regional) já entregou listas de decisões, de inúmeras situações. E que, claro, são recebidas educadamente, mas vão para "aquele cantinho".
JC – Como a entidade participa do debate? Estão conseguindo acompanhar alguns dos grupos de trabalho?
Kuschick – Eu acompanho quando acontece em horários favoráveis. Algumas manhãs tenho compromissos que assumi, porque nós não tínhamos atividade (relacionada à revisão do Plano Diretor) nas quintas-feiras às 9 horas da manhã (quando acontecem as reuniões do GT Desenvolvimento Econômico). Não vou abrir mão do meu (compromisso) porque tenho me oferecido constantemente para trabalhar em horários que sejam mais favoráveis, pedi, solicitei, mas não foi assim o entendimento. Bom, paciência. Quando foi à noite, quando foi nos horários das 16h, 17h ou 18h, nós temos participado, e algumas vezes quando não colide diretamente com (outras) atividades. Mas eles não têm muita tolerância. Eu vejo que fazem questão de afastar alguns de nós.
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JC – Como a Socecon entra no debate do Plano Diretor, qual a motivação e o interesse em participar?
Kuschick – A Sociedade de Economia participava do Conselho Municipal no início dos anos 2000, quando tinha outro tipo de reunião, não eram todas as semanas do ano, eram reuniões mensais mais espaçadas. Depois, o conselho foi ocupado – porque o conselho é resultado de uma ação de forças sociais que se somam – e a OAB, o Sindicato e o Conselho dos Corretores de Imóveis, o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Porto Alegre... não sei se estou dizendo corretamente todas as entidades, foram pra dentro do conselho ali por 2010, 2011, formaram uma rede, e, a cada eleição, chegavam nas reuniões de votação com dez ou onze votos certos, em que eles estavam incluídos e outros estavam excluídos. Então: Instituto dos Arquitetos fora, Sindicato dos Arquitetos fora, Conselho de Arquitetura e Urbanismo fora, Acesso fora, e todas essas entidades não conseguiam ingressar. Então, em 2017 nos reunimos, juntamos Sindicato dos Economistas e várias entidades e ganhamos a eleição. Porque a leitura que eles faziam é a seguinte: “qualquer obra traz emprego, qualquer obra traz trabalho, qualquer obra traz renda, eu quero renda e emprego para Porto Alegre e esses ‘barbudinhos’ aí vivem complicando, eles não devem continuar no conselho e nós vamos mandar aqui”, e assim havia esse acordo dessas entidades, que nós conseguimos quebrar. Aí de repente entrou essa história da pandemia e ficou assim, esse tumulto. E fomos enfrentando os secretários municipais designados pelo Marchezan e agora pelo Melo. E aí entrou a questão do Plano Diretor. E o Conselho Municipal é um lugar que não debate coisas…
JC – Por exemplo…
Kuschick – Vamos discutir um plano habitacional popular, vamos discutir um plano de arborização… Não, não passa nada lá. São processos, de alargamento de uma ruazinha, para discutir se nós vamos botar área verde, ou área escolar... Pequenas coisas assim, e não se discute política mais ampla. E é um conselho que discute desenvolvimento, que implica crescimento econômico, implica resultado econômico, implica melhoria na qualidade de vida da população… Ambiental, qual é a discussão ambiental que deve ser feita? Porto Alegre tem algum interesse na discussão ambiental? Pelo Conselho isso não passa. E teria que passar. Então nós estamos ali incomodando os senhores que mandam em Porto Alegre. E o conselho tem um problema, ele é tripartite, então tem nove servidores que representam a administração municipal e esses servidores nunca votam contra a administração municipal, porque são CCs ou são de carreira, mas estão lá para cumprir um papel de apoio continuado ao dono do conselho, que é o município. Então, o município arranca com nove votos. As regiões de planejamento são mais nove votos. A Prefeitura tem domínio sobre RGP3, RGP6, RGP8 e OP. E aí tem mais as entidades. O Senge (Sindicato dos Engenheiros) vota sempre com a administração municipal, porque não quer complicação, quer o progresso de Porto Alegre… Todos queremos, mas nós queremos dentro de uma condição de respeito. Nós já discutimos internamente, mas os conselheiros que representam o município têm direito a opinião, teriam direito a um voto livre, teriam direito a serem cidadãos porque representam secretarias municipais, representam quadros técnicos, eles deveriam ter a inteireza, maturidade de poder examinar o tema e dizer: “o cidadão que está falando ali tem tem razão”. Essa é uma outra questão sobre o regulamento do funcionamento do conselho, em que o município não entra para perder nunca. Eu acho que ele poderia e deveria esperar perder algum encaminhamento.
JC - Há uma orientação do Ministério Público para a prefeitura, na revisão do Plano Diretor, regrar a função do Conselho. Como o prefeito já desregulamentou outros colegiados, acredita que isso possa acontecer com o Conselho do Plano Diretor?
Kuschick - Isso sempre é um risco, sempre é um perigo. No Conselho Municipal de Saúde, a prefeitura perdeu muitas vezes as votações. Então, perdendo as votações, as decisões que foram tomadas (pela prefeitura) não podiam ser cumpridas porque ela perdeu no Conselho. Por isso a prefeitura tentou, e fez com o apoio da Procuradoria Geral do Município. Mas houve uma decisão judicial (em 6 de junho) em que a juíza disse que essa lei do município (tirando o caráter deliberativo do Conselho de Saúde) é uma arbitrariedade. Ou seja, sempre eles querem fazer isso nesses conselhos onde tem uma réstia de participação da população, que nós mal ou bem representamos. E é o risco que constantemente corremos, mas para isso estamos aí para fazer política, para conversar, para argumentar. É difícil muitas vezes argumentar dentro do conselho, porque tem ali umas cartas marcadas. Você pode fazer um bom estudo, trazer bons argumentos para o debate, para o esclarecimento, mas se o secretário decidiu que não votará nessa tese, então todos os funcionários que ali estão votarão com a tese que o secretário determinou. Isso é uma fragilidade intrínseca, essa fortaleza que o município tem ali dentro, que assegura a vitória nos votos. Ao mesmo tempo é uma fraqueza, porque isso faz com que coloquem goela abaixo coisas que não poderiam ser assim.
JC - Qual a expectativa do Sociedade de Economia com a revisão do Plano?
Kuschick - Essa é uma das revisões mais debatida, mais combatida e que teve mais investimento da parte do setor público. A prefeitura pegou dinheiro do Banco Mundial, fez essas contratações todas (de consultorias, via Pnud), isso nunca existiu em Porto Alegre, porque todos os Planos Diretores foram feitos com base no corpo técnico que a prefeitura tinha e na adesão de técnicos das entidades, da sociedade civil que vinham colaborar de livre e espontânea vontade, dentro da ideia do interesse coletivo, de melhoria da cidade. Estamos enfrentando o poder do mundo econômico financeiro, não tenho ilusão sobre isso. A correlação de forças já está dada. E o nosso lado vai continuar brigando. Uma Câmara de Vereadores de direita, majoritariamente, não representa o campo popular, uma Assembleia Legislativa de direita, um Senado de direita, uma Câmara Federal de direita... O mando do capital no Brasil, hoje, é muito consolidado. O Lula é presidente porque conseguiu vencer o processo eleitoral, mas, do ponto de vista parlamentar, ele é muito frágil. Esse é o enfrentamento que politicamente tem que se fazer dentro do Brasil e nós vamos fazer esse enfrentamento em Porto Alegre, sabendo que tem cartas marcadas, que tem coisas definidas, que o Melo não é um candidato do campo popular. Por isso eu te digo, nós não temos ilusão sobre o quanto vamos conseguir avançar dentro do Plano Diretor de Porto Alegre, porque já vem um apoiamento muito grande de fora do Conselho.
JC – Em que sentido?
Kuschick – O Plano Diretor é uma lei que tem o artigo primeiro, artigo segundo, artigo terceiro, vai até o artigo 140, e já pedimos, dentro das reuniões do conselho, qual é o protótipo da lei do novo Plano Diretor que já tem consolidado? Eles não querem discutir isso. Para as entidades seria importante sugerir, e às vezes as nossas sugestões são muito importantes, são muito modernas, são muito aperfeiçoadoras do projeto. E eles não querem muito discutir essa questão. É um terreno muito difícil, sabemos que é muito difícil, mas não abrimos mão de, mesmo derrotados em seguidas votações, seguirmos colocando o nosso ponto de vista, diferente do que é considerado o adequado. E vamos seguir nisso.
JC – Que outras questões você gostaria de destacar?
Kuschick – Preciso dizer que nós somos favoráveis a todos os projetos de modernização da cidade, mas que esses processos sejam debatidos, que existam plenárias para permitir a manifestação dos envolvidos, que representam regiões, que representam entidades. E elas precisam ser adequadamente preparadas, divulgadas, em local acessível e em horários que não sejam estapafúrdios. É muito difícil um conselho municipal não ouvir a população, e o sistema remoto em que estamos desde o processo da pandemia é muito bom, é muito prático, mas não permite esse contato, essa necessidade que há de conversar e de se defrontar ao vivo com aliados, oponentes… Outra coisa que quero comentar é que o cronograma (das atividades da revisão do Plano Diretor) está fechado e foi fechado quase que exclusivamente por eles. Claro que o poder público, a Secretaria Municipal que representa o Prefeito Municipal num projeto com um Plano Diretor, têm um papel condutor que é muito importante. Mas eles deviam compartilhar. Então esse cronograma que está posto ele é continuamente reiterado, nos é trazido “a data fatal é essa, tem que acontecer isso, aquilo…” E o compartilhamento disso é frágil. Outro ponto importante, a estrutura do poder municipal chama os jornalistas e comunica novidades, boas novas, e nós, que estamos envolvidos, nossas entidades têm responsabilidade, somos comunicados pela imprensa. É super importante o trabalho dos jornalistas, mas muitas vezes os vários jornais são comunicados de coisas e essas decisões, dadas como alvissareiras, oportunas, adequadas, maravilhosas para a cidade, para a comunidade, não tiveram também uma geração compartilhada, produzida, não tenham esse debate anterior. Um Plano Diretor aqui quer modernizar uma cidade, quer atualizá-la no regramento urbanístico, é muito importante, mas não pode ser um Plano Diretor cativo dos interesses do capital privado. O Plano Diretor não é só um canal para oportunidades ao capital privado. Ele precisa ser uma oportunidade para a população poder reorganizar, poder sugerir, poder intervir na escala de valores, nas prioridades que são colocadas.
Entrevistas publicadas
Essa entrevista integra uma série realizada com as entidades que compõem o Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre, com a proposta de conhecer os interesses envolvidos no debate.
07/06 Asbea - Asbea espera Plano Diretor de Porto Alegre com regras mais claras e liberdade para projetar
14/06 Saergs - Sindicato dos Arquitetos quer incentivos para habitação social no Plano Diretor de Porto Alegre
21/06 Socecon - Sociedade de Economia aponta falhas na revisão do Plano Diretor de Porto Alegre
28/06 Senge - Para Sindicato dos Engenheiros, Plano Diretor não pode 'engessar' projetos
05/07 Abes - Associação de Engenharia Sanitária e Ambiental quer prioridade da pauta habitacional em Porto Alegre