Para quem trabalha em contato com o Plano Diretor, a lei em Porto Alegre precisa ser de fácil acesso e compreensível - hoje, além de dispersa, já que outros instrumentos legais alteram ou regulam o que é previsto pelo Plano, há muita margem para interpretação, avalia André Huyer, vice-presidente do Sindicato dos Arquitetos do Rio Grande do Sul (Saergs).
Além do quesito técnico, há preocupação com temas ligados ao planejamento urbano que dialogam com necessidades da população, a exemplo da habitação de interesse social, que o sindicato defende que seja incentivada pelo poder público. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Huyer trata desses e de outros pontos a serem considerados na revisão em andamento, conforme a expectativa da entidade.
Jornal do Comércio – Como o Sindicato dos Arquitetos está acompanhando a revisão do Plano Diretor?
André Huyer – Estamos nos grupos de trabalho. Desde que foi prorrogado novamente o mandato do conselho (do Plano Diretor), que era pra ser dois anos e já vai para cinco, o nosso conselheiro, o Hermes Puricelli, não concorda com isso e nem o Sindicato, então ele não tem mais ido às reuniões, em protesto. Ele diz que podemos até perder a representação, mas a democracia é isso, não pode (o governo) ficar dando canetaço e prorrogando. Mas nas reuniões das comissões de revisão eu tenho participado e alguns outros colegas eventualmente também participam.
JC – Como é o diálogo com a prefeitura? O Sindicato foi procurado para contribuir ou disponibilizou algum conteúdo?
Huyer – A prefeitura está aberta nessas comissões, está liberado para dar contribuição, fazer interferência, perguntar ou falar. Nós não elaboramos nenhum documento até o momento, até estamos pensando em fazer, porque a Prefeitura recebe essas contribuições. É até uma ideia para deixar mais claro alguns pontos que consideramos mais importantes nesse processo.
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JC – Quais são esses pontos? Qual a expectativa do Saergs com essa revisão?
Huyer – Tem várias questões. Vamos começar vendo o todo do planejamento urbano na cidade, com o Plano Diretor sendo o seu principal instrumento Para nós, como Sindicato dos Arquitetos, dos profissionais que atuam desde a elaboração do Plano Diretor e sua revisão até os profissionais que enviam projetos para serem licenciados, os que fazem licenciamento na prefeitura e os que atuam no mercado executando as obras, tem uma questão polêmica há muito tempo, generalizada, que é a dificuldade do profissional ter uma um perfeito entendimento do Plano Diretor. Por exemplo, se chegar o cliente e me disser: “André, eu tenho terreno em tal lugar, o que dá pra fazer lá?”. Conforme a situação eu vou dizer pra ele que não sei, que vou ter que fazer uma pesquisa, uma consulta. Isso é um absurdo! Pode valer para situações excepcionais, para alguém que tem um terreno muito diferenciado, um zoneamento muito específico e quer fazer um empreendimento muito fora do comum. Aí realmente eu não vou ter resposta na hora. Mas digamos assim, um arquiteto que trabalha em Uruguaiana, por exemplo, tem um conhecido aqui e queria que aquele arquiteto fizesse o projeto. Há muito tempo, aliás, esse serviço pode ser feito em qualquer lugar. E o profissional deveria, entrando no site da Prefeitura, ter acesso a toda legislação pertinente de uma maneira compreensível. E na prática não é bem assim.
JC – E como é?
Huyer – A pessoa não consegue interpretar a legislação ela é muito complexa. Não é só o Plano Diretor, é espalhado, tem outras legislações, resoluções interpretativas… Enfim, nem a Prefeitura sabe direito toda legislação e mesmo dentro da própria Prefeitura, se cai com um revisor ele entende uma maneira, com outro ele entende de maneira diferente. E com os projetos especiais nem se fala. O Sindicato almeja que a legislação seja descomplicada, para não ter que contratar um assessor jurídico para interpretar o Plano Diretor e a legislação conexa. A primeira questão é essa, seria uma redação, digamos, mais amigável. Isso é bom tanto para os profissionais como para o próprio pessoal da prefeitura não ficar batendo cabeça.
JC – Quais outros pontos são de interesse da entidade para levar ao debate?
Huyer – Outra questão importantíssima é que não só os arquitetos têm que entender o Plano Diretor. A população também tem que entender o Plano Diretor. Não adianta fazer uma audiência pública e dizer “nessa zona da cidade estamos propondo um índice de aproveitamento 1,6”. De que adianta isso? Não serve pra nada. O prefeito Telmo Thompson Flores (1969-1975) fez um plano para uma área da cidade e fez uma maquete gigantesca de como a cidade ficaria. Hoje em dia não vejo mais maquete. E tem softwares de 3D à disposição inclusive de consultores que trabalharam com a Prefeitura que mostram isso, põe a cidade como está, põe os índices que o Plano Diretor está propondo e vai mostrar como fica. Por que não se mostra isso aqui? É fundamental, não se pode fazer um Plano Diretor que a população não entenda o que vai acontecer no futuro. Tem que se demonstrar o que está propondo, qual é a situação hoje, o que tem existente, o que pode se fazer hoje com o planejamento que existe e o que vai mudar mudar, se mudar. E temos outras preocupações, não adianta só mexer no Plano Diretor se ele não é atendido. Não se segue o que foi planejado.
JC – Em que sentido?
Huyer – São exceções se multiplicando isoladamente, pontuais, os projetos especiais que fazem as suas flexibilizações, fugindo do que o Plano Diretor propõe. Aí muda o Plano Diretor, faz um para o Centro e outro para o 4º Distrito isoladamente do resto, que deveria ser uma coisa só. Muda o zoneamento lá na Fazenda do Arado, que também é uma alteração do Plano Diretor sem levar em consideração o todo, e por aí vai. Isso não é planejamento urbano de boa qualidade. Quer mudar o Centro? Ok, mas vamos examinar tudo. Como isso vai se refletir para o resto da cidade? Questionamos muito isso das flexibilizações: até que ponto, para quem, em que situação… Para que Plano Diretor se uma pessoa consegue ir lá e flexibilizar tudo o que quer?
JC – Tem um exemplo disso?
Huyer – Temos a Vila Assunção, considerada área de especial interesse cultural, por causa da concepção do bairro no estilo cidade jardim, com o sistema viário adequado à topografia, não é xadrez, tem muita área verde, praças, é um bairro residencial de habitação unifamiliar, com casas de centro de terreno e um núcleo de comércio e serviço para as pessoas irem à pé, que é a cidade de 15 minutos que estão falando hoje. E agora tem prédios de cinco andares, tem condomínios em fita que vão de uma divisa à outra (do terreno) com três ou quatro pavimentos de altura, e aí está descaracterizando totalmente o bairro. A primeira cidade jardim do mundo, Letchworth, perto de Londres, está hoje igual a como era 110 anos atrás. Por que não podemos ter um bairro ou alguns bairros que mantenham as características? Essas flexibilizações, nem passam pela Ephac (Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural) que deveria examinar, ela não examina mais nada, só olha o índice urbanístico. E estou dando exemplo brando, porque uma coisa é digamos a tipologia, que foge do que se esperava, por exemplo a pessoa comprou uma casa e agora tem um edifício do lado fazendo sombra. Isso acontece em outros bairros. E tem outras flexibilizações que burlam o espírito do Plano Diretor, que são para a demanda, mas prejudicam a pessoa que, de boa fé, quer morar num bairro residencial. Mas o sentido é esse, que tem muita flexibilização e não tem planejamento urbano.
JC – Porto Alegre tem os casos dos planos específicos para o Centro e para o 4º Distrito, feitos à parte da revisão do Plano Diretor. Isso prejudica o planejamento do todo?
Huyer – Exatamente. O planejamento urbano, o que ele é? Ele é regulação. Então não adianta vir com (a ideia de) estado mínimo. Estado mínimo é uma coisa, regulação é outra. Ou então vamos rasgar o código nacional de trânsito? Vamos tirar a sinaleira e o mercado regula como o trânsito vai funcionar? Aí, num loteamento novo, vou fazer as vias da largura que eu quero, porque o mercado vai regular? Não, tem coisas que não são assim. Regulação não se trata de estado mínimo ou máximo ou de governo. Se não tiver regulação, é um caos. Está cheio de exemplo aí. E tudo o que tem de ruim acontecendo é porque não se segue a ciência do planejamento urbano. Está tudo previsto, se fizer isso vai acontecer tal coisa, e acontece. Leva 20 anos, 30 anos, mas acontece. Nós estamos pagando hoje coisas dos planos passados, que não escutaram o que os próprios técnicos alertaram que ia acontecer. Por exemplo, hoje em dia é tendência dizer que os afastamentos (entre os prédios) estão muito grandes. Estamos tendo um retrocesso sanitário. O Plano Diretor não precisa então dizer “tantos metros de afastamento”, tem outros instrumentos que dão muito mais liberdade e muito mais responsabilidade. Alguns municípios já adotaram que, por exemplo, pode-se fazer o edifício do tamanho que quiser, mas todos os vizinhos têm que ter duas horas de sol por dia, entre dez da manhã e duas da tarde.
JC – Onde isso?
Huyer – Em Pelotas. E não sei se duas horas é o mínimo suficiente. Mas é melhor que nada. Então, se tu puxa o teu prédio pra frente, pra trás, o teu terreno é mais alto, é mais baixo, te vira. Daqui a pouco tu não pode fazer. Agora, tu vai tirar o sol? Como era quando não tinha Plano Diretor? Olha aqueles edifícios do Centro, afastado um metro e meio da divisa porque o código civil exigia, senão não o afastamento ia ser menor. Edifícios de quinze, vinte andares, poços que nunca pegam luz. É isso que querem? Isso é o mercado regulando e as pessoas compram o que tem porque não têm opção. Então tem que ter regulação e ela tem que ser inteligente e prever essas coisas. E tem que ter estudo. Duas horas de sol por dia serve aqui em Porto Alegre? Não sei. Vamos contratar uma consultoria, está cheio de dinheiro aí para isso, e vão dizer quantas horas precisa.
JC – O Sindicato tem expectativa de que venha algo assim, com base em estudos, nessa revisão?
Huyer – Eu gostaria, (mas) pelas pressões que tenho escutado, acho que vai piorar as coisas, vamos continuar num retrocesso ambiental, sanitário, para as pessoas. E quanto à questão técnica, não é fazer uma audiência entre os técnicos da prefeitura e a população e o Sindicato dos Arquitetos e dizer “vamos fazer de tal jeito, o índice tal, aqui mais alto, aqui mais baixo”. Tem que embasar isso tecnicamente, estamos falando de uma ciência, o planejamento urbano. Isso aqui não é vontade de “eu acho mais bacana ou não”. Tudo tem fundamento e consequência. Por exemplo, no Plano Diretor nos anos 1990 a Prefeitura contratou o professor Juan Luis Mascaró para fazer um estudo sobre o adensamento em Porto Alegre. E o estudo concluiu que o máximo que daria para fazer aqui é índice de aproveitamento de 2,7, mais do que isso a cidade ficaria antieconômica. Qual é o índice máximo que foi adotado? Três. Então Porto Alegre optou por ser uma cidade antieconômica. Tem um estudo dizendo que não é pra ser, eles vão e fazem. E a esposa dele, a Lúcia Mascaró, também fez vários estudos dizendo que o ideal para o clima de Porto Alegre é o edifício de centro de terreno, para ter ventilação. Aquela quadra de Barcelona (com construções que contornam o quarteirão, com área livre no interior do quarteirão) não funciona em Porto Alegre.
JC – Que outra pauta o Sindicato espera que seja tratada na revisão?
Huyer – Uma coisa importantíssima que aqui no Sindicato defendemos com unhas e dentes é a habitação de interesse social. Onde é que a pessoa de menor renda hoje, em Porto Alegre, vai comprar um lote para fazer sua casa? Não tem. Um terço de Porto Alegre é irregular. E por que acontece isso? Por que o mercado não regula isso se tem gente que quer comprar? O mercado não consegue oferecer habitação, não digo nem habilitação, o terreno, porque se a pessoa tiver um terreno, ela se vira, desde que tenha segurança de que aquele terreno é dela e que não vai ser despejada dali. Mas ela teria que ter condições de, com o seu salário, comprar pelo menos um terreno, ter um financiamento para comprar um terreno. Mas não tem. Por quê? Porque a nossa legislação ignora a questão da baixa renda. E se pegar o estatuto da cidade, pegar todas as leis maiores, elas dizem que pode fazer uma legislação simplificada, com menos exigência para a habitação de interesse social. E cadê essa legislação?
JC – Teve muita crítica aos projetos do Centro e do 4º Distrito por não ter incentivo consistente para a habitação de interesse social.
Huyer – Não tem. “Vai acontecer se o mercado quiser…”, então não vai acontecer nada.
JC – O mercado não quer atender esse público?
Huyer – Vão dizer que (o público de baixa renda) não consegue pagar. Mas então o Plano Diretor tem que desde já contemplar isso, e hoje em dia não contempla. Diz que se for num projeto especial… Não, tem que dar de cara. Está cheio de opções, mas elas não entram na legislação. Aí até o empreendedor que quer trabalhar com baixa renda pensa que vai ter que fazer um projeto especial, não sabe quanto tempo vai levar, e então faz para a alta renda de uma vez. Quem mora em bairro classe média não vai para a periferia, não sabe o que é andar sem parar e é só subabitação e sobe morro e desce morro e continua, e as dificuldades imensas que esse pessoal tem... E pensam “por que eles moram lá, por que querem?” Não, é porque a cidade não oferece outro lugar. Isso é uma coisa que a nossa legislação até hoje não contemplou.
JC – Como o Plano Diretor poderia incorporar, de maneira mais efetiva, essa pauta?
Huyer – Chamar quem entende do assunto, (que) vai ver qual é o poder aquisitivo, o que impede hoje, quais são os instrumentos... Como eu disse para a questão da insolação e do índice de aproveitamento, vamos chamar quem entende do assunto e eles vão colocar na mesa, põe a consultoria trabalhar nisso. No Brasil tem vários exemplos muito bons, então não vamos começar do zero. Mas tem que fazer.
Entrevistas publicadas
Essa entrevista integra uma série realizada com as entidades que compõem o Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre, com a proposta de conhecer os interesses envolvidos no debate.
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14/06 Saergs - Sindicato dos Arquitetos quer incentivos para habitação social no Plano Diretor de Porto Alegre
05/07 Abes - Associação de Engenharia Sanitária e Ambiental quer prioridade da pauta habitacional em Porto Alegre