Ter regras mais claras, concentradas em um único lugar, e permitir maior liberdade projetual são as demandas que a Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura no Estado (Asbea-RS) demandará da prefeitura de Porto Alegre na revisão do Plano Diretor.
Para isso, além de compor o conselho que trata do plano, a Asbea participa das atividades organizadas pelo poder público para tratar do tema e tem os seus próprios grupos de trabalho para debater internamente o Plano Diretor e outros conteúdos relacionados ao planejamento urbano.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, a presidente da entidade, Raquel Hagen detalha a expectativa dos profissionais que projetam novas construções na cidade.
Jornal do Comércio – A ASBEA organizou um evento com associados e com a prefeitura. Qual foi o objetivo?
Raquel Hagen – Foi uma mesa redonda, não só com a prefeitura. Convidamos o Sinduscon, tínhamos convidado também o IAB, mas não puderam comparecer, chamamos o CAU e tínhamos, além dessas entidades, também uma professora da Unisinos e uma professora da PUC. Acabou tendo bastante opiniões sobre vários pontos de vista. A discussão foi feita para que os associados conseguissem entender um pouco mais do que está acontecendo na revisão do Plano Diretor. Temos um um grupo de trabalho do Plano Diretor, mas nem todos os associados participam, então a ideia era abrir, para além do GT, para os associados entenderem o que está acontecendo.
JC – Esse GT já produziu conteúdo de apoio para prefeitura, a exemplo do decreto que trata dos rooftops, certo? Poderá levar uma contribuição também na revisão do Plano Diretor?
Raquel – Com certeza. Algumas contribuições já foram feitas. Por exemplo, a questão do rooftop, que nasceu com nosso apoio. E a Prefeitura foi obviamente além e avançou bastante em relação a isso. Na questão da certificação ambiental, também fizeram essa provocação e o GT de Sustentabilidade deu um suporte para opiniões em cima dos critérios, com base também em outras certificações que existem. Depende de cada caso, mas a ideia é que o GT de Plano Diretor possa ter entregas ao longo desse processo de revisão e que siga fazendo discussões, levando questões para a prefeitura. A exemplo da conversa que tivemos (no evento). Sabemos que não se consegue abranger tudo. Mas tem assuntos que precisam pelo menos estar em pauta.
Leia também: Coluna publicará entrevistas com entidades sobre o Plano Diretor de Porto Alegre
JC – A Prefeitura demonstra estar aberta a receber essas contribuições?
Raquel – Da nossa parte inclusive nos pedem. E dizem que sentem falta de receber contribuições mais formais também. Às vezes é difícil, só vira uma crítica em relação ao que está sendo feito, mas não uma proposição do que poderia... O que nos passam e acabam demandando é: “formalizem o que que vocês entendem que é importante para que a gente consiga de fato ter isso em em vista na revisão”.
JC – Sobre o Plano Diretor, já foi entregue algum material de apoio para a prefeitura ou a Asbea tem algo em elaboração?
Raquel – Temos uma lista de itens que consideramos fundamentais para a revisão do Plano Diretor. E, à medida que a vai amadurecendo a discussão, vão surgindo outros pontos. Por exemplo, quando trabalhamos com um projeto de arquitetura, gostaríamos que o Plano Diretor nos desse mais liberdade formal de projetar e não ficássemos tão presos. Ao mesmo tempo, sabemos que é importante ter regramentos, pois nos dão uma segurança do que se está projetando, no seguinte sentido: posso projetar e (sabendo que) amanhã não vai sair uma coisa totalmente diferente. Ao mesmo tempo, entendemos que a cidade é muito dinâmica e dez anos para revisar o plano é tempo demais. As discussões levam tempo e as coisas já estão acontecendo. O limite é saber o que precisa ser revisado mais rapidamente em relação àquilo que precisa ter essa discussão ampla e que seja fundamental a participação de todos. Essa é uma discussão importante. O que realmente precisa é ter essa discussão que, por ser de dez em dez anos, obrigatoriamente acaba sendo mais longa, porque são muitos assuntos, e aquilo que poderia, por exemplo, ser revisado por decreto. Agora, o decreto não pode ser o todo, e o plano rege o todo. O que pode estar fora e o que tem que estar dentro? É esse limite aí que tem que se estabelecer claramente.
JC – Neste sentido, tem aparecido muito nas falas da Prefeitura, e também de alguns consultores, é a ideia de monitorar o crescimento da cidade. Seria uma maneira de perceber a dinâmica da cidade e, ao monitorar o que está acontecendo, ajustar a legislação ou o regramento para atender a essa dinâmica, isso?
Raquel – É isso aí, porque uma cidade muda. Um exemplo são os bares. Falamos inclusive sobre a Cidade Baixa no evento. Tem um movimento de prédios na Cidade Baixa, mas vamos pensar em relação aos bares, o que era pouco tempo atrás e o que é hoje. Hoje tem vários núcleos de bares na cidade. Uma percepção que temos é que, por ter essas policentralidades de restaurantes, de bares, não tem tanta gente assim na Cidade Baixa, que mudou um pouco. Não que o bairro tenha que deixar de ser o que é, mas temos que entender que mudou e o que se faz com isso. Se queremos que volte a ser como era, o que se pode fazer? Mas também existem outros fatores além do Plano Diretor. Por exemplo, há movimento de fechamento de lojas de rua ou de lojas de um modo geral, mesmo dentro de shopping, porque as pessoas compram mais pela internet. Isso não depende do Plano Diretor dizer onde colocar a loja. Temos que entender esses movimentos e o que se pode fazer. E isso o monitoramento dos dados ajuda a saber quantos prédios novos tem em um tal lugar na cidade, lojas abertas, pessoas morando lá… Na verdade é um compilado de dados e a ideia é que pudesse sempre se atualizar com dados da cidade inteira para que se consiga avaliar isso. Por exemplo, na Tristeza, as casas estão vazias. É um bairro maravilhoso, mas as casas estão esvaziando. O que se faz? Se esperar todas as casas esvaziarem para fazer alguma coisa, vamos esperar vinte anos numa outra revisão… Então esse monitoramento é super atual e faz total sentido. E é fundamental justamente para ter esse afinamento, porque não precisa esperar dez anos para fazer alguma coisa, é possível fazer antes. O que fazer, bom, daí tem uma que ter uma discussão do que fazer caso a caso, bairro a bairro. Mas se sabe o que está acontecendo, é mais fácil de conseguir achar uma solução.
JC – Que demandas os associados da Asbea esperam que a revisão atenda?
Raquel – O que mais vem é um pouco mais de liberdade projetual. Temos tantos limitadores de afastamentos, de regras, é tão na minúcia… É um plano tão complexo. Por exemplo, um recém formado não consegue sair projetando em Porto Alegre. É necessário ter, às vezes, uma pessoa especializada no escritório, e existem até alguns escritórios associados da Asbea, que fazem só a tramitação de projetos, de tão complexo que é. Então, entendemos que não precisa ser super complexo dessa forma. Pode ser um plano que simplifique sem desqualificar. As regras podem ser mais claras também. Às vezes tem regras sobrepostas, têm intenções que não se conseguem aplicar.
JC – Como?
Raquel – O plano tem intenções maravilhosas de primeiro mundo e, quando chega ali para projetar aquele lote, não é a mesma coisa. Parece que não estão linkadas uma coisa com a outra. Entendo que (a demanda dos associados) seja muito do anseio de trabalho, ter mais condições de liberdade de projetar dentro daquele espaço e clareza nas informações. Simplicidade de entendimento. Não é desregrar, nada disso. É ter clareza de conseguir executar, porque às vezes não sabemos e discutimos, entre colegas, o que achamos que é. O plano não é novo e segue sendo discutido, porque segue gerando dúvidas. Cada um interpreta de uma maneira diferente alguns pontos, e achamos que é prejudicial para cidade e para o nosso dia a dia de trabalho.
JC – São vocês que lidam com o Plano Diretor no dia a dia. Então é como uma ferramenta de trabalho…
Raquel – É totalmente ferramenta de trabalho. E hoje temos um plano super complexo e, além do plano, um monte de decretos, de pareceres, de atas, instruções normativas… é muita informação. Cada uma num lugar. Eu quase tenho que virar uma advogada para conseguir acompanhar a legislação e seguir o DOPA (Diário Oficial de Porto Alegre), que é onde se publicam (as alterações legais de normas municipais). É muita informação e dentro da prefeitura são vários setores que têm as suas resoluções internas. Para conseguir enxergar o todo, tem que conhecer todas as partezinhas. Nossa maior demanda há muito tempo é organizar essas informações.
JC – Como poderia ser?
Raquel – Hoje tem dentro do site prefeitura, não oficialmente, um compilado do Plano Diretor com várias dessas normativas. Se tivesse tudo concentrado num lugar só e que constantemente estivesse sendo atualizado, já melhoraria muito.
JC – Conforme se atualiza no DOPA.
Raquel – Exatamente. Se tivesse tudo concentrado num documento único, ficaria muito mais simples de lidar.
JC – Você falou que não se busca uma simplificação sem regramento, a ideia seria manter um regramento mínimo para criar uma ideia de cidade, ao mesmo tempo que permita uma liberdade criativa maior pro trabalho dos arquitetos…
Raquel – É, ninguém quer ver uma cidade colcha de retalhos, que seja uma coisa grudada na outra sem sentido algum. Na maior parte dos bairros, ou às vezes dentro de cada bairro, tem uma variação de cidade e uma identificação, também. Quem anda numa rua no Bom Fim sabe que está no Bom Fim. A cidade não pode ser essa uma junção de um monte de coisa estranha. Tem que ter uma lógica estruturante do todo, que é o Plano Diretor, e precisa ter regramentos, até porque eu não posso ter uma insegurança de hoje projetar uma casa e naquele lugar só podem ser construídas casas, daí amanhã, mesmo tendo um Plano Diretor que vai durar dez anos, poder construir um prédio ou uma casa de shows do lado. Tem que ter um uma lógica estruturante para o todo, não é nesse sentido que eu digo que precisa simplificar. As regras são importantes, são fundamentais para a segurança de todos, para que não seja, por exemplo, um desejo de cada governo mudar o regramento total de uma cidade. Por isso também que os planos precisam ter esses dez anos. Tem que ter essa segurança de que não é uma questão política de uma hora um quer uma coisa, outra pessoa quer outra e a cidade fica uma bagunça. Queremos uma simplificação no sentido de leitura, de conseguir identificar quais são as regras. Quais são as regras? Elas estão claras? Precisamos de regras claras. No momento em que as regras estão claras, sei até onde posso ir, como posso fazer e, dentro daquelas regras, tenho liberdade. Não preciso chegar naquela altura (permitida no terreno) e, dentro do envelope do prédio (combinação entre altura e recuos), faço o que quiser. Parece que hoje tem que ficar esmagado dentro do envelope. Queremos ter folga para poder pensar além, para poder projetar além, para realmente ver as melhores soluções.
JC – E isso interfere na cidade como um todo.
Raquel – As pessoas não se dão conta que o Plano Diretor não define a sociedade que a gente está hoje, ele vai definir uma cidade daqui a alguns anos. A cidade onde vivemos hoje foi definida pelos planos passados. O Plano Diretor influencia diretamente na vida de todo mundo, onde moro, como é que me desloco, onde trabalho… 100% das pessoas precisam estar atentas à questão do Plano Diretor.
JC – O que foi ou não foi construído ou como a vizinhança é formatada está relacionado com o plano.
Raquel – Sim. Em Porto Alegre, se analisar com calma, dá para ter uma ideia dos prédios de cada plano. Tem prédios que são referência na faculdade de Arquitetura que não podem ser construídos hoje.
JC – Pela altura, por não ter recuo, a ideia do prédio escalonado…?
Raquel – Então, são vários. E queremos construir. E melhor. Queremos ter mais liberdade nesse sentido sem suprimir o regramento, porque ele é importante, é fundamental.
JC – Tem alguma questão do regramento prático que precisaria ser diferente, pensando nessa ideia de buscar uma liberdade construtiva e a simplificação das regras?
Raquel – Tem várias. A questão da altura, que é sempre a polêmica, por si só não é quase nada. Por exemplo, um fator isolado sobre a saúde de uma pessoa, não quer dizer se ela está bem ou se está mal, depende dos outros fatores para saber se aquilo ali faz sentido ou não. Os afastamentos, por um lado, tentam garantir uma eficiência do prédio. Só que, hoje em dia, tem maneiras de garantir isso de diversas formas. Hoje temos simulações, podemos testar, porque não necessariamente este afastamento exato que existe hoje (na lei) vai garantir a melhor insolação ou a ventilação adequada. E não vejo porque uma demanda, que entendo ser responsabilidade do arquiteto - garantir que aquele projeto é bom - tenha que um município cobrar como é que tem que fazer aquele prédio para ficar bom. Hoje tem normas de desempenho e responsabilidades das mais diversas, em relação a um projeto e diretamente o próprio cliente. Então, se projetar um prédio muito ruim, ainda que existam pessoas mais leigas que não tem essa percepção na hora da compra, e não estou diretamente falando disso, mas o construtor sabe que não vai vender se num quarto não tem janela, chegar a esse extremo, por exemplo. Tem esses marcadores no plano que não necessariamente os únicos ou os melhores. Também nesse sentido tinha que ter mais liberdade de demonstração de eficiência. Por exemplo, esses afastamentos laterais criaram um problema, um empreendedor pequeno não consegue construir num terreno só, porque ele tem que dar afastamento. Quando se dá o afastamento, o prédio fica uma faixinha que não cabe nem o banheiro. Então ele precisa ter mais de um terreno, e pensa “se eu vou agregar um, vou agregar dois” e vai aumentando os projetos. Aí os pequenos não conseguem construir porque acabam tendo que comprar muito terreno e isso acaba gerando empreendimentos maiores. Não acho que 100% dos prédios em Porto Alegre tem que estar um colado no outro. Não é isso, mas ter um parâmetro para poder avaliar.
JC – Aí perde até a ambiência que você falou.
Raquel – Exatamente. E tem outra coisa em relação a altura fundamental de entender: o observador, a pessoa que está passando na rua, caminhando, o quanto ela vai vivenciar naquele prédio é até uma certa altura depois ele ir pra cima não está passando na rua com a cabeça erguida. A gente vive a cidade numa escala de pedestre. Então a nossa percepção é até uma certa altura. Depois disso eu entendo que tem que ser uma escolha que depende de outros fatores.
Entrevistas publicadas
Essa entrevista integra uma série realizada com as entidades que compõem o Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre, com a proposta de conhecer os interesses envolvidos no debate.
07/06 Asbea - Asbea espera Plano Diretor de Porto Alegre com regras mais claras e liberdade para projetar
14/06 Saergs - Sindicato dos Arquitetos quer incentivos para habitação social no Plano Diretor de Porto Alegre
21/06 Socecon - Sociedade de Economia aponta falhas na revisão do Plano Diretor de Porto Alegre
28/06 Senge - Para Sindicato dos Engenheiros, Plano Diretor não pode 'engessar' projetos
05/07 Abes - Associação de Engenharia Sanitária e Ambiental quer prioridade da pauta habitacional em Porto Alegre