No mês passado, Núbia Luísa Vargas dos Santos não entrou na partilha pelo trabalho na Cooperativa de Educação Ambiental e Reciclagem (Cear) Sepé Tiaraju, onde é presidenta. A decisão partiu dela, que optou por distribuir o que seria a sua parte entre os colegas.
No galpão da Rua Frederico Mentz trabalham atualmente 14 catadores fazendo a separação, item a item, de tudo o que está dentro dos sacos de lixo que os porto-alegrenses descartam diariamente na coleta seletiva. No fim do mês, o rendimento por pessoa mal chega a um salário mínimo: a média varia atualmente entre R$ 800,00 e R$ 1 mil. "Às vezes é desesperador", confessa Núbia sobre a situação financeira - dela e da cooperativa.
A Cear Sepé Tiaraju é uma das 16 Unidades de Triagem (UTs) contratadas pela prefeitura de Porto Alegre para receber os resíduos da coleta seletiva. Ou seja, o poder público contrata esse serviço para dar o melhor destino ao "lixo seco", já que a gestão dos resíduos é responsabilidade dos municípios. E, em abril deste ano, recebeu a licença de operação ao se tornar a primeira cooperativa enquadrada na resolução nº 3/2021 do Conselho Municipal do Meio Ambiente (Comam), que define os documentos necessários para o processo de licenciamento ambiental para essa atividade.
Mas "é só o começo", lembra Joice Maciel, gestora ambiental e sócia fundadora da Apoena Socioambiental, que acompanha o trabalho de licenciamento da Cear e de outros galpões de reciclagem. A medida, construída por entidades ambientalistas em conjunto com o poder público, é uma forma de não interromper o processo de licenciamento, que segue em andamento, caso o lugar ainda não tenha atendido todos os requisitos.
O que a normativa do Comam faz é dar condições às unidades e centrais de triagem de se enquadrarem à Lei Municipal Nº 12.811/2021, que estabelece o Licenciamento Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC) e indica os parâmetros a serem considerados para regularizar a situação no período de quatro anos, quando o lugar terá que comprovar o atendimento das pendências necessárias para completar o processo de licenciamento.
Assim como as demais cooperativas contratadas pela prefeitura, a Cear Sepé Tiaraju tem na sua origem o esforço que o poder público empreendeu por anos para formalizar o trabalho de catar e encaminhar os resíduos para a reciclagem feito por comunidades de baixa renda da Capital. Fundada em 2011, a situação da Cear não era considerada irregular antes de conseguir o LAC, em abril deste ano, pois estava amparada pela "licença guarda-chuva", nome que se deu a uma licença de operação de 2012 que abrigava 12 UTs.
Mas a situação era provisória, e o objetivo que se traçou na época ainda precisa ser alcançado: adequar cada unidade, individualmente, às demandas dos órgãos ambientais. Acontece que os galpões, na sua maioria instalados pelo próprio poder público, têm dificuldade até mesmo de se enquadrar no regramento urbanístico. "Historicamente, quando se teve esse encaminhamento, foi para atender um programa de inclusão produtiva. Não foi pensando em abrir cooperativas para atender o aspecto mais ambiental. Talvez tenha sido uma falha", avalia Joice.
Por não ter sido resolvida essa demanda no passado, hoje as cooperativas têm dificuldade de firmar contratos com empresas ou entidades setoriais para receber os materiais recicláveis. Isso porque, com a responsabilidade de dar a destinação final adequada aos resíduos, as empresas firmam parceria com cooperativas que comprovam atender as exigências dos órgão ambientais.
Para conseguir isso, a Cear Sepé Tiaraju precisa investir em obras no galpão, onde armazena os resíduos e faz a triagem, e no pátio, para se adequar ao que as normas ambientais exigem. Mas esbarra na falta de recurso financeiro.
Assim como as demais UTs da Capital, a cooperativa da Frederico Mentz recebe da prefeitura um valor mensal que varia de R$ 4 mil a R$ 6 mil e que não pode ser usado para pagar os trabalhadores. Mas nem teria como: o dinheiro recebido do poder público deve ser usado para cobrir despesas de manutenção, e nem pra isso dá.
Na manhã de 19 de agosto, quando articuladores do grupo POA Inquieta visitaram o local, não tinha luz elétrica. O sol até dava conta de iluminar parte do galpão, mas a esteira, por onde passa o resíduo que será separado manualmente e que leva o rejeito até uma caçamba, não tinha como funcionar.
Além do que recebe da prefeitura, o restante do recurso financeiro da cooperativa vem da venda do material triado. O preço a ser pago é definido pelo comprador, não por quem vende, e o rendimento varia conforme a qualidade do resíduo que chegou até o galpão e do interesse do mercado na compra. É daí que sai a diferença entre o recurso da prefeitura e os cerca de R$ 11 mil por mês das despesas fixas e de manutenção.
E esse cálculo não inclui a partilha, que é a divisão, entre os cooperados, do que recebem pela venda do material - equivale ao salário pelo mês trabalhado. Sem recurso suficiente para arcar com todas as contas, Núbia diz que muitas vezes a escolha é "deixar de pagar um boleto para manter o salário, para garantir um pouco da dignidade das pessoas".
Falando em remuneração aos catadores
Trabalho de triagem na Coopertinga, cooperativa de reciclagem de resíduos sólidos
MARCELO G. RIBEIRO/JC
“Pagamento por serviço ambiental” é o nome que se dá à remuneração paga a quem prestam um trabalho na área ambiental em benefício de toda a sociedade. No caso dos catadores, o pagamento é pelo trabalho de abrir cada uma das sacolas de lixo descartada nas casas, em empresas ou repartições públicas, separar as embalagens por tipo e encaminhar, quando tiver um grande volume, para a reciclagem.
Ou seja, profissionais como os catadores estão cumprindo o que é responsabilidade de todos, seja quem produz ou quem consome: dar o destino ambientalmente adequado aos resíduos. E é nesse mesmo ponto que o trabalho se torna de relevância ambiental: quando o que seria “lixo” vai para a reciclagem, deixa de sujar o chão, de poluir o solo e as águas.
Pagar para que esses profissionais trabalhem em uma cooperativa, e não nas ruas, atende à demanda que falta para completar o tripé da sustentabilidade: ambiental, econômica e social.
Minidicionário
Triagem: de acordo com o dicionário Aurélio, triagem significa seleção ou escolha. No universo da reciclagem, o sentido da palavra é o mesmo, e faz referência ao ato de selecionar as embalagens e separar por tipo de material.