Com bronquite alérgica desde o nascimento, o inverno de Pedro, hoje com sete anos, costumava ser "mais na UPA do que em casa", conta a mãe Liziane Fredo Bitencourt. Neste ano, mesmo com o frio intenso que já marca presença, ela acredita que a saúde do filho estará mais preservada. O quarto dele, que não tinha forro no teto nem reboco nas paredes, passou por reforma realizada por meio do Instituto Vivenda, com recurso de um doador anônimo e a proposta de qualificar o cômodo mais precário de 15 casas em Porto Alegre.
O foco de iniciativas como essa é melhorar a moradia de famílias de baixa renda que enfrentam um tipo de déficit habitacional - não a demanda por um lugar para morar, mas que é igualmente reconhecido pelas políticas públicas do setor: o déficit qualitativo, quando a casa precisa de melhoria na própria estrutura ou na infraestrutura urbana para garantir condição de ser habitada.
Para ilustrar, podemos pensar numa casa que não tem muitas janelas: com pouca circulação do ar e sem iluminação natural, a umidade é alta e o mofo toma conta. Ou então uma residência que não tem cobertura adequada e acaba chovendo dentro. Casos assim são "menos endereçados pelo poder público", aponta Duda Alcântara, diretora executiva do Instituto Vivenda, que tem sede em São Paulo e, com o recurso de parceiros privados ou doadores, atende projetos para a população de baixa renda em todo o País.
É o caso da família da Liziane, que há 25 anos mora no mesmo terreno do Loteamento Mariante, na Zona Leste da Capital, e já tinha feito uma adaptação na casa quando soube da doença do filho. A antiga construção de madeira tinha cupim e o vento atravessava as frestas. A solução foi substituir a estrutura por alvenaria - a obra "envolveu" a casa antiga, que só foi desfeita depois de pronta a nova estrutura.
Com poucos recursos financeiros, Liziane conta que a obra vai andando conforme a condição do momento, e os acabamentos ficaram para depois - ainda falta forro e reboco, além de terminar o banheiro. Mas, diante da oportunidade de ganhar a reforma de um cômodo da casa, a escolha pelo quarto do Pedro foi óbvia. E para atender ao desejo do menino, a parede ganhou tinta azul para lembrar o personagem Sonic que ele tanto gosta.
Quarto do Pedro foi pintado de azul para lembrar do personagem Sonyc
A mesma oferta chegou até a família vizinha, que também escolheu reformar um quarto. Com infiltração desde a construção da casa, há oito anos, o mofo tomava conta das paredes e prejudicava a saúde de Shaiane Sherol da Costa Vidal, 36 anos. Ela teve Covid-19 no início da pandemia e ficou nove meses internada, sendo 45 dias entubada.
Ainda hoje Shaiane tem sequelas: sem condições financeiras de fazer as sessões de fisioterapia indicadas para o seu quadro clínico, não recuperou totalmente a autonomia para caminhar e usa cadeira de rodas. Além disso, os pulmões estão comprometidos, caso mais comum de quem passou pela doença. Por passar o dia todo em casa, acabar com o mofo persistente nas paredes é parte essencial do tratamento para a sua recuperação.
Shaiane e a mãe Marli; elas escolheram reformar o quarto para acabar com o mofo e ajudar no tratamento das sequelas da Covid-19
"Sem o projeto não teria como fazer (a reforma), ia continuar com o mesmo problema", conta a mãe Marli Teresinha da Costa. Em casos assim, a reforma "trata a 'doença da casa' para melhorar a saúde de quem habita nela", sustenta a arquiteta Karol Almeida, responsável técnica pelo projeto arquitetônico, pela compra do material e pela orientação aos pedreiros que realizam a obra nas duas casas.
A participação da profissional na obra é importante para identificar problemas que o público popular e vulnerável muitas vezes desconhece, por não ter o costume de contratar um arquiteto. Na casa da Marli e da Shaiane, por exemplo, o problema é de umidade ascendente, pois a construção é baixa e a água do solo sobe em capilaridade pelas paredes. É um conceito bem técnico, que elas só descobriram com a explicação da Karol.
Para o reparo foi retirado o reboco, passado impermeabilizante e refeito o reboco e a pintura. Também foi trocada a janela e o forro de madeira por PVC. A estrutura ainda precisará de manutenção no futuro, mas o reparo vai durar bastante e garantir para Shaiane o ambiente de qualidade que ela precisa para seguir o tratamento do pós-covid. Num jogo de palavras, Karol sustenta que "a principal melhoria das melhorias habitacionais é a questão da saúde".
Quarto tinha infiltração desde a construção da casa, há oito anos
Parceria local com empreendedores sociais
Fundadora da Kopa Coletiva Arquitetura Popular, que atua principalmente na Restinga, Karol Almeida é uma das parceiras do Instituto Vivenda em Porto Alegre e integra um grupo chamado de executores - empreendedores sociais locais que recebem, além da demanda de trabalho, consultoria de marca, financeira e de gestão de equipe para atuar nos projetos. As 15 obras citadas no início do texto também contam com atuação do escritório Ah! Arquitetura Humana e atendem, além do Loteamento Mariante, casas nos bairros Restinga e Bom Jesus.
Ação inspira prefeitura da Capital
Duda Alcântara explica que "o primeiro lugar de busca é o poder público, que conhece as famílias" que mais precisam de atendimento. Em Porto Alegre o contato foi uma ligação para a Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária. "Quando o telefone toca a gente tem sempre que atender, do outro lado pode estar uma grande notícia", comenta o secretário André Machado, em referência a uma máxima que aprendeu com a colega jornalista Ana Amélia Lemos, ex-senadora. As reformas do Instituto Vivenda não envolvem recursos do poder público.
André também fez ligações para lideranças em comunidades já atendidas pela Reurb - a regularização fundiária para famílias de baixa renda. No Loteamento Mariante, foi o senhor Milton Borges Bueno que fez as indicações. "Parece pouco, mas ajuda; cada quadrado tem a sua história", disse Milton. “Faço votos de que continue” completou a mãe do Pedro.
A ideia é mesmo seguir. As reformas do Instituto Vivenda não envolvem recursos do poder público. À coluna, André Machado adianta que o município está elaborando uma proposta semelhante, para garantir a melhoria habitacional em áreas com Reurb, “para que a regularização fundiária não se encerre num pedaço de papel”.