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Opinião Econômica

Publicada em 16 de Abril de 2025 às 19:38

O privilégio dos EUA está em xeque?

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Agências
Solange Srour
Solange Srour
A recente disparada nos juros dos títulos do Tesouro americano (Treasuries) tem sido atribuída por muitos à liquidação de posições alavancadas baseadas nesses ativos. Embora esse fator técnico tenha contribuído, a raiz do movimento parece ser bem mais profunda: a erosão do privilégio exorbitante dos Estados Unidos no sistema financeiro internacional.
Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA desfrutam do status de principal fornecedor global de ativos seguros. Essa posição lhes permite financiar déficits fiscais recorrentes, com o apoio de investidores estrangeiros dispostos a aceitar rendimentos menores em troca da segurança e liquidez dos Treasuries.
Historicamente, em momentos de crise -como na crise financeira global de 2008- esses investidores atuaram como estabilizadores. No último trimestre daquele ano, por exemplo, absorveram US$ 270 bilhões em Treasuries, mais da metade das emissões do período, mesmo com os EUA apresentando déficits nominais acima de 9% do PIB. O resultado foi a manutenção dos juros em patamares baixos, ancorados pela confiança na segurança dos ativos americanos.
Esse quadro, porém, vem se transformando. Desde a pandemia, surgiram sinais de ruptura. Em março de 2020, em vez da clássica "fuga para a qualidade", o mundo vendeu US$ 400 bilhões em Treasuries, especialmente de longo prazo, o que forçou o Federal Reserve a intervir, comprando mais de US$ 1 trilhão. Outro momento crítico ocorreu com a eclosão da guerra na Ucrânia, quando as Bolsas caíram fortemente e os títulos americanos perderam valor na sequência.
Tudo indica que demanda estrangeira se tornou mais sensível ao preço. Paralelamente, os bancos centrais -que por anos acumularam esses títulos em seus balanços- passaram a se retrair. O fim do afrouxamento quantitativo e o retorno da inflação forçaram o Fed (e outros bancos centrais) a interromper a expansão de seus balanços, reduzindo a absorção de risco e pressionando os juros.
Entre 2007 e 2022, o Tesouro emitiu quase US$ 19 trilhões em títulos. O Fed absorveu US$ 5,15 trilhões e o restante do mundo, US$ 5,36 trilhões. Essa base de compradores inelásticos sustentou a demanda mesmo com déficits crescentes. Mas essa realidade pode estar mudando -e antes mesmo de o governo Trump trazer como prioridade a eliminação do seu déficit em conta corrente. Caso os EUA precisem equilibrar sua conta corrente, o investidor estrangeiro deixará de ser financiador líquido, exigindo a sua substituição pela poupança doméstica.
Essa mudança de comportamento do mercado é especialmente preocupante diante do quadro fiscal atual. A renovação dos cortes de impostos, que Trump pretende aprovar no Congresso, pode adicionar US$ 37 trilhões aos déficits nas próximas três décadas, elevando a dívida pública para mais de 200% do PIB.
Esse cenário lembra a trajetória do Reino Unido no século 20. No século 19, Londres era o centro financeiro global. Mas, entre as duas guerras, perdia esse status à medida que seus fundamentos fiscais se deterioravam. Com o fim da hegemonia britânica e o nascimento de Bretton Woods, o dólar assumiu a liderança como reserva de valor.
O episódio britânico de 2022 é emblemático sobre como, sem o status de reserva global, os mercados punem rapidamente países com fundamentos frágeis. O anúncio de cortes de impostos sem compensações levou a uma reação agressiva dos mercados: os juros dos títulos de dez anos subiram mais de cem pontos-base em um curto período, e a libra caiu para mínimas históricas.
Se os EUA perderem sua posição como principal fornecedor de ativos seguros, seus mercados podem passar a se comportar como os das demais economias -altamente sensíveis a choques fiscais. O privilégio exorbitante não desaparece de forma abrupta, mas os sinais de fratura são cada vez mais evidentes.
Sem o amparo irrestrito de investidores estrangeiros e bancos centrais, a disciplina fiscal volta a ser inegociável.
Economista-chefe do Credit Suisse Brasil

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