Rodrigo Zeidan, professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ
"Os gritos vem de dentro da casa?"
"Sim."
"Então não posso fazer nada."
"Chame a polícia!"
"Posso fazer, mas a resposta vai ser a mesma."
"Então venha comigo, por favor."
Esse diálogo, através de um aplicativo de tradução, aconteceu em uma noite chuvosa, às 2 da manhã, entre minha mulher e o segurança do nosso condomínio.
E lá foram eles fazer algo que ninguém faz na China: meter-se em briga de marido e mulher. Lá, as regras estão mudando, mas parece que estamos no Brasil de décadas atrás: a polícia não se mete, não importa o quanto alguém grite dentro de casa.
No máximo, vai bater na porta e pedir para que as pessoas saiam de casa. Se ninguém o fizer, paciência. Para sorte de todos, a noite acabou bem: quando eles chegaram para bater na porta, a esposa estava saindo de casa e o marido não a seguiu (inclusive, porque aí poderia ser preso).
No Brasil, a Lei Maria da Penha, delegacias da mulher e outras medidas limitam os danos da violência doméstica, embora seja impossível acabar com essa praga. Por exemplo, o estabelecimento de uma delegacia da mulher reduz o percentual de feminicídios em 17%, com efeito ainda maior nas mulheres de 15 a 29 anos, de acordo com estudo de Elizaveta Perova e Sarah Anne Reynolds.
Essas medidas, assim como as de vários estados americanos, que permitem que a polícia prenda, mesmo sem mandado judicial, suspeitos de violência doméstica, são baseados em uma premissa simples: aumentar a punição a agressores diminui a frequência de tais eventos. E funcionam. Por exemplo, nos estados mexicanos que criminalizaram a violência doméstica, até mesmo o percentual de suicídios de mulheres caiu, entre 22 e 34%, como verificado por Trinidad Beleche.
Casos de agressão doméstica são notoriamente difíceis de estudar, pois são sub-reportados. Normas, como a Lei Maria da Penha, nunca são perfeitas. Há sempre erros do tipo 1 e tipo 2. Nesse caso, o primeiro diz respeito a indivíduos que precisam de ajuda, mas não recebem, enquanto o segundo contempla os acusados que são inocentes. Mas esses últimos erros são raros, especialmente em comparação com o tamanho do problema.
Em um estudo com 3.500 mães e filhos no Brasil, Romina Buffarini e colegas encontraram que um terço das mulheres ou crianças sofreram algum tipo de violência doméstica, seja física ou psicológica.
As taxas continuam subindo no Brasil e são as maiores da história. Mais de um terço de todos os assassinatos de mulheres acontecem por violência doméstica, e, em 2023, foram quase 259 mil casos registrados de lesão corporal dolosa, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira (18), um aumento de quase 10% em relação a 2022.
Se alguém acha que o número de acusações infundadas contra homens chega a qualquer fração significativa dos casos reais de violência deveria procurar um livro básico de estatística.
Sabemos que muitos casos de violência doméstica não vão para frente por vários motivos, inclusive por reconciliação do casal, seja por qual motivo for. Mas o que não podemos fazer é minimizar a importância dos mecanismos de combate a um dos tipos mais comuns de violência no Brasil. Acusação não é condenação, mas mentira é muito mais fácil de ser verificada.
Falta muito para que nos tornemos um país civilizado. O mínimo que podemos fazer é envergonhar quem minimiza ou se esquiva de explicar porque é parte das estatísticas de abusadores. Esse não é o país que queremos.
jc