Cecilia Machado, economista, professora da EPGE fa FGV
Apesar de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) eliminar diversas distorções do nosso atual regime de tributação sobre consumo -e de ser uma mudança que promete trazer enormes ganhos de produtividade para a economia-, ele sofre a crítica de ser um tributo regressivo, já que indivíduos de baixa renda direcionam maior proporção de sua renda ao consumo.
Uma forma de corrigir essa distorção é fazer a devolução do imposto para as pessoas de acordo com algum critério, o que está previsto na reforma que foi aprovada no ano passado. Mas foi apenas recentemente -na proposta de regulamentação da reforma- que a forma da devolução do imposto ficou conhecida: um cashback para as famílias pobres -com renda per capita de até meio salário mínimo- que integram o CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais), do governo federal.
Se de um lado pode-se argumentar que o foco nessa população corresponde a um direcionamento de recursos para os mais pobres, de outro é importante ponderar que a qualidade das informações que constam nesse registro não é invariante às políticas que são implementadas através dele, já que muitas dessas informações são autodeclaradas.
Estudo recente do Insper mostra que há 6,6 milhões de famílias vulneráveis a mais nos registros do CadÚnico em comparação ao número de famílias pobres encontradas nos dados da PnadC, a pesquisa domiciliar de cobertura nacional realizada pelo IBGE. Ou seja, o número de famílias pobres no cadastro é 29% maior do que na PnadC. Ainda que a compatibilização de conceitos entre o CadÚnico e a PnadC não seja perfeita, essa é uma discrepância elevada, que pode alcançar diferença de até 9,7 milhões de famílias em razão do conceito de renda utilizado.
O diagnóstico do estudo é que há falhas nos registros do CadÚnico e, portanto, também na focalização de programas sociais que utilizam o cadastro como referência, a exemplo do Bolsa Família. As razões por trás da recente perda de qualidade desses registros podem ser inúmeras, mas é razoável esperar que as informações declaradas no CadÚnico estejam respondendo às regras que determinam a concessão dos benefícios de programas sociais.
Desde a pandemia, o Bolsa Família passou por duas importantes mudanças: o aumento do valor dos benefícios concedidos e o estabelecimento de um valor mínimo para as transferências. Essas mudanças foram introduzidas no auxílio emergencial, mas passaram a ser incorporadas de forma permanente no novo Bolsa Família.
Sabe-se que o valor mínimo estimula a declaração de famílias menores ou unipessoais, ao passo que o valor da transferência cria incentivos para subdeclaração da renda. À medida que o CadÚnico passa a subsidiar novos programas sociais e de redistribuição de renda, eventuais perdas de qualidade dos registros também se aplicarão a eles.
Ainda mais preocupante é a possibilidade de as regras desses novos programas reduzirem ainda mais a qualidade das informações do CadÚnico. O Pé de Meia, que prevê o pagamento de bolsas a jovens de baixa renda inscritos no Bolsa Família, é um exemplo. Será que esse novo programa irá gerar incentivos para que jovens declarem estar em famílias unipessoais?
De volta ao cashback, os ganhos em progressividade precisam ser ponderados em relação aos custos de perenizar uma devolução de impostos em base fluida, que pode mudar ao longo do tempo e que responde aos incentivos de demais políticas sociais. Alternativamente, pode-se alcançar progressividade de outras formas, sem nenhum critério de renda, conforme se considera em Da Costa e Santos (2023).
Quando a qualidade do CadÚnico não é invariante às regras das políticas redistributiva implementada através dele, perenizar novos programas a ele pode vir a um elevado custo fiscal.
Folhapress