Pandemia de Covid-19, intensificação da digitalização, vida mais intensa na "rede social" do que na vida real, trabalho remoto e híbrido, movimentos de companhias para voltar com força ao presencial e Inteligência Artificial (IA). Seis ingredientes que colocaram no topo um problema: adoecimento mental.
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O assunto entrou na agenda da última NRF Retail's Big Show, em Nova York, em janeiro, pelo impacto não só na sociedade, mas no ambiente de trabalho, principalmente em meio à busca de mais eficiência, em contraste com o fator humano no centro. A consultoria global WGSN apontou que quase um quarto das pessoas no mundo relata solidão diária.
Além disso, a IA, que é associada a mais possibilidades de melhorar os negócios, gera uma dose de "medo" no comando: 27% de CEOs globais temem consequências não intencionais ligadas à tecnologia.
O tema ganhou novo tempero no Brasil ante possível adiamento da exigência para empresas adotarem ações ligadas à atualização da NR-1, de Norma Regulamentadora, para a gestão de riscos psicossociais no ambiente de trabalho.
O calendário prevê que empresas de todos os setores têm de se ajustar a partir de 26 de maio para seguir o que está na normatização. Mas a vida real mostra que há uma distância entre a regulamentação e a adoção das medidas.
O Ministério do Trabalho e Emprego deve adiar a vigência, atendendo ao pedido de entidades patronais, uma delas a Fecomércio-RS, que representa uma base de empresas com 1,5 milhão de empregados, para prorrogar a implementação por 12 meses. A entidade, maior federação de sindicatos patronais do Rio Grande do Sul, pediu adiamento da cobrança da implementação da NR-1, reforçando pleito de outras entidades.
As medidas vão desde rotinas de acompanhamento da saúde dos trabalhadores, programas para agir nos casos e registro para organismos, como o Ministério do Trabalho, que vai fiscalizar o cumprimento da norma.
Afastamentos batem recorde
A explosão de afastamentos gerados pelo adoecimento está na retaguarda do tema. Dados do Ministério da Previdência Social, noticiados pela Agência Brasil, dão conta de 440 mil casos relacionados a transtornos mentais e comportamentais em 2024. Dez anos antes, foram 203 mil casos. Frente a 2023, a alta foi de 67%. O número recente é recorde histórico e, claro, tem uma conta que é paga pelo sistema geral. Sem contar o impacto na produtividade das empresas, com a saída da mão de obra.
"Novos dispositivos trazem conceitos abertos e subjetivos, dificultando a aplicação prática", diz Bohn
EVANDRO OLIVEIRA/JC
A Fecomércio-RS levou o pleito ao ministro Luiz Marinho, que acenou para o adiamento em encontro com centrais sindicais e outras federações e confederações patronais, em 14 de abril, em Brasília. A pasta terá a tarefa de fiscalizar a aplicação do regramento. As medidas que estão para serem implementadas integram a portaria 1.419, de 2024, que alterou a redação da NR-1.
Um dos focos do comando da Fecomércio-RS é o rol de medidas previstas no Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR) que abrange fatores psicossociais. A federação não desqualifica "o mérito da proposta do Ministério do Trabalho e Emprego em reforçar a saúde e segurança ocupacional", mas reage que "os novos dispositivos trazem conceitos abertos e subjetivos, dificultando a aplicação prática e gerando insegurança jurídica".
O maior argumento é da capacidade para cumprir as exigências da nova regulamentação. "A falta de clareza nos critérios de identificação e avaliação dos riscos psicossociais, além da escassez de profissionais especializados, são entraves apontados pelas organizações para a implementação eficaz dos novos protocolos", elenca a entidade.
"A saúde e a segurança dos trabalhadores são prioridades inegociáveis, mas é fundamental que as empresas tenham condições reais de cumprir as normas com responsabilidade. A prorrogação do prazo é uma medida de bom senso, que permitirá um período de adaptação mais estruturado e seguro para todos os envolvidos", defende o presidente da federação, Luiz Carlos Bohn, em nota.
O dirigente reforça, no comunicado, que o novo prazo "é essencial para que os empregadores tenham tempo hábil para se adaptar, estruturando ações preventivas de forma responsável e segura". "O tempo seria adequado para maior suporte técnico, conscientização e orientação, até em função das penalidades previstas", manifesta Bohn.
Do lado das centrais, a esperada concessão do comando da pasta do Trabalho não foi bem-vinda, devido aos indicadores de incidência do adoecimento. "Estamos indignados com o adiamento. Éramos contra. Agora vamos pressionar para que implementem logo", avisa o vice-presidente da Central Única dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul (CUT-RS), Everton Gimenez.
Jornada 6x1, que domina supermercados, entra na aplicação de NR-1, diz sindicalista
PATRÍCIA COMUNELLO/ESPECIAL/JC
"Precisamos de um esforço coletivo para enfrentar esse problema que atinge trabalhadores, empresas e a economia", defende Guiomar Vidor, presidente da Central dos Trabalhadores do Brasil no Estado (CTB-RS) e da Federação dos Comerciários. Vidor lamenta que tenha faltado "mais atenção" sobre a gravidade dos impactos.
"Só no Rio Grande do Sul foram 37 mil afastamentos por transtornos mentais e depressão em 2024", registra o presidente da CTB-RS. O sindicalista cita ainda que a pauta da jornada 6x1, que domina o comércio que funciona sete dias na semana, está diretamente ligado às disposições da NR-1, devido à carga horária mais intensiva. No Estado, grupos como o Zaffari são alvos de críticas, mas a prática é prevista em acordo com sindicatos de trabalhadores e é disseminada nas atividades comerciais.
Transtornos de ansiedade quadruplicam em 10 anos
Transtornos de ansiedade lideram afastamentos, com alta de 400% em 10 anos
Pixabay/Reprodução/JC
Enquanto entidades patronais buscam mais tempo para aplicar a NR-1, o governo federal aprovou e publicou um guia para a gestão dos riscos. Além disso, pretende lançar em 90 dias um manual mais detalhado sobre o tema e criar um Grupo de Trabalho Tripartite (GTT) para fazer o acompanhamento da implementação da NR-1. A medida busca dar conta da demanda dos segmentos, que cobram orientação mais clara para os empreendimentos aplicarem as regras.
A oficialização da prorrogação é esperada ainda para abril. O capítulo 1.5 da NR-1 foi alterado em portaria em agosto de 2024, incluindo expressamente os fatores de risco psicossociais relacionados ao trabalho no Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (GRO), efeito de três anos de discussão no Grupo de Estudos Tripartite (GET) da Comissão Tripartite Paritária Permanente (CTPP) do Ministério do Trabalho e Emprego.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimaram, em 2022, que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente para a depressão e ansiedade, com custo de quase US$ 1 trilhão à economia global, dado citado em publicação do Ministério do Trabalho.
Segundo a Previdência Social, afastamentos por transtornos de ansiedade, que somaram 141,4 mil casos em 2024, lideram o cenário de doenças na área de saúde mental. A alta é de mais de 400% em relação a 2014. Episódios depressivos somaram 113,6 mil, a segunda maior causa de distanciamento do trabalho, o dobro de dez anos antes, de acordo com o organismo que gerencia a seguridade geral, que cobre diferentes vínculos, não só carteira assinada.
Na lista, estão ainda os transtornos depressivos recorrentes, com 52.627 casos, seguido por transtornos afetivos bipolares (51.314), transtornos mentais e comportamentais decorrentes do uso de drogas e outras substâncias psicoativas (21.498) e reações ao estresse grave e transtornos de adaptação (20.873).
Os motivos que estão ligados a razões psicossociais têm ainda afastamentos por doença mental com casos de esquizofrenia (14.778), transtornos mentais e comportamentais decorrentes do uso de álcool (11.470) e uso de cocaína (6.873) e transtornos específicos da personalidade (5.982).