A semana passada foi agitada para quem acompanha o trabalho de construção de uma legislação para regular a Inteligência Artificial no Brasil. A expectativa era pela votação no Senado do projeto de lei do senador Rodrigo Pacheco, que recebeu 29 emendas em 48 horas. Muitos especialistas defendiam a necessidade de mais tempo para o debate. E foi isso que aconteceu.
A decisão foi adiada e ficou definido que serão realizadas mais cinco audiências. Nesta entrevista, o advogado especialista de direito digital no escritório Abe Advogados, Marcelo Cárgano, fala sobre a necessidade de termos uma legislação equilibrada, que não limite a inovação e, ao mesmo tempo, seja capaz de mitigar riscos como vieses algorítmicos e uso indevido de conteúdo protegido por direitos autorais ou propriedade industrial.
Mercado Digital – Estamos vivendo o momento de construção de uma legislação de IA no País. Quais os principais cuidados que precisam ser tomados?
Marcelo Cárgano – A IA veio para ficar e continuará a evoluir de maneira vertiginosa, como já está demonstrando. O que as tentativas de regulamentação tentam definir é de que forma que queremos que a IA seja desenvolvida, quais diretrizes éticas e regulatórias que devem moldar o seu desenvolvimento, como criar um ambiente propício para a inovação, e como lidaremos com o seu impacto na sociedade.
Não podemos ter uma regulamentação ineficiente; incapaz de mitigar riscos já conhecidos da IA (como vieses algorítmicos, uso indevido de conteúdo protegido por direitos autorais ou propriedade industrial, desrespeito a legislações vigentes de privacidade e proteção de dados e os impactos socioeconômicos causados pela perda de empregos) e de impulsionar o desenvolvimento nacional. É fundamental posicionar o Brasil como um produtor e não somente um consumidor de IA.
Mercado Digital – Quais os principais pontos que precisamos observar no projeto de lei que está tramitando no Senado?
Cárgano – Atualmente é até difícil precisar os pontos preocupantes de forma exata, devido à diversidade de projetos em discussão no Congresso Nacional. Hoje, há pelo menos dez projetos distintos sobre Inteligência Artificial sendo debatidos – além do PL nº 2.338, de 2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco que, inclusive, possui versões substitutivas. Além disso, parlamentares têm apresentado diversas emendas aos projetos de última hora, de fato que é difícil precisar agora qual versão será levada a votação. Feita essa ressalva, entendo que é um risco o Brasil não regulamentar o tema, risco que é seguido de perto pelo perigo de uma regulamentação inadequada, que limite a inovação sem sequer garantir princípios éticos essenciais.
Mercado Digital – O que uma legislação moderna de IA precisa ser capaz de endereçar?
Cárgano – De maneira resumida, a regulamentação da IA deve ter princípios e fundamentos, ou seja, estabelecer princípios éticos claros que orientem o desenvolvimento, implementação e uso da IA, como, por exemplo, promover a transparência, justiça, privacidade, responsabilidade e respeito aos direitos humanos em todas as aplicações de IA. Também precisa ter uma abordagem baseada em riscos, ou seja, estabelecer mecanismos para avaliar e mitigar os riscos associados ao desenvolvimento, implementação e uso de sistemas de IA.
É fundamental definir claramente quais riscos são considerados inaceitáveis, como, por exemplo, sistemas de pontuação social, técnicas de manipulação subliminares, ou policiamento preditivo. Precisamos estabelecer mecanismos de governança e supervisão envolvendo, possivelmente, uma agência reguladora especializada.
Mercado Digital – E a inovação, de que forma deve ser contemplada?
Cárgano – A legislação deve abordar questões relacionadas à inovação e financiamento e desenvolvimento de IA, bem como treinamento de mão de obra qualificada para incentivar o desenvolvimento de novas tecnologias e aplicações de IA. Também precisa abordar o impacto socioeconômico potencial significativo da IA sobre o mercado de trabalho. Outron fato é enfatizar a necessidade de transparência quanto aos processos de tomada de decisão da IA, abordar de forma robusta a questão da privacidade e proteção de dados e a responsabilidade civil, determinando quem é responsável por danos causados por sistemas de IA a usuários e terceiros. Propriedade intelectual e segurança nacional também são temas fundamentais.
Mercado Digital – Qual a importância de termos uma lei adequada para a realidade local?
Cárgano – Muita. Qualquer que seja a regulamentação adotada, o Brasil tem o dever de incentivar que tecnologias de IA sejam treinadas em conjuntos de dados que reflitam a cultura, o contexto e o idioma local dos brasileiros, em toda a sua diversidade. A maioria das ferramentas de IA (especialmente de IA generativa, como o ChatGPT) foi construída e treinada com material e dados em inglês (e, em menor grau, em chinês), de modo que tais IAs podem ser incapazes de compreender corretamente nuances linguísticas, expressões idiomáticas e contextos culturais específicos do Brasil e do português. Isso aumentaria não somente nossa dependência tecnológica como até pode levar a uma imposição de normas linguísticas e culturais de países anglo-saxônicos maior do que já existe hoje.
Mercado Digital – Que países já possuem legislações regulamentando IA?
Cárgano – Diversos países têm adotado iniciativas legislativas para regular o uso de IA, sendo que hoje temos ao menos dois claros padrões, o chinês e o europeu. A China vê a IA como uma tecnologia estratégica para alcançar seus objetivos econômicos e geopolíticos e investe maciçamente no tema. De maneira geral, a China estabeleceu regras para garantir o controle do governo central no desenvolvimento de novas tecnologias, mas não adota restrições tão rígidas quanto ao de IA na vigilância estatal, censura e controle social.
A Europa aprovou recentemente sua lei sobre Inteligência Artificial, seguindo uma abordagem centrada na classificação de riscos. Este modelo proíbe usos de IA considerados de risco inaceitável e impõe requisitos rigorosos para sistemas de alto risco, como avaliações de risco, e mecanismos de governança.
Os Estados Unidos (que, junto com a China, são os vanguardistas no desenvolvimento de IA) tem até o momento adotado uma postura não intervencionista, recorrendo a diretrizes voluntárias e autorregulação pela indústria. Mas, há um movimento crescente para estabelecer regras mais estruturadas por parte da população, de agências federais e mesmo do Congresso.
No Japão, o governo apresentou em abril um documento delineando sua visão de tornar o Japão “o país mais amigável do mundo à IA”, promovendo um ambiente favorável para o desenvolvimento e adoção dessa tecnologia, defendendo alguma regulamentação para mitigar certos riscos associados ao uso de IA em ciberataques, fraudes, disseminação de desinformação, interferência eleitoral, violações de propriedade intelectual e vazamento de dados pessoais.