A mudança na legislação chinesa que proibia famílias de ter dois filhos, que foi suspensa em 2015, ampliou o mercado de produtos lácteos no país, especialmente para os importados. A nova configuração da família chinesa, na qual cada dia se torna mais comum um casal e dois filhos, e não apenas um, o consumo de produtos lácteos, como leite em pó, cresce significativamente. E, com a importação de lácteos do Brasil aberta pela China neste ano, a indústria gaúcha também poderá ganhar com isso.
A Viva Lácteos, Associação Brasileira de Laticínios, estima que, após os processos de habilitação, o Brasil poderá exportar US$ 4,5 milhões em produtos lácteos para a China. E, de acordo com Darlan Palharini, secretário-executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados do Rio Grande do Sul (Sindilat), apenas em leite em pó, o gigante asiático costuma importar, anualmente, 800 mil toneladas, o que equivale a 132% de toda a produção brasileira (600 mil toneladas).
Essa nova configuração da família chinesa tem como bom exemplo a médica Jiang Fang. Logo que a lei foi alterada, e como seu único filho já havia verbalizado que queria um irmão, a médica e o marido decidiram ter um segundo filho, ainda em 2016. Fang conta que ela própria sempre quis ter uma irmã e, por isso, decidiu ter mais um bebê e satisfazer o desejo do filho. "Eu via a relação da minha mãe com sua irmã e achava bonito. Sentia falta de alguém para compartilhar as coisas, conversar, dividir problemas", recorda a médica.
Sem o final da lei, caso tivesse dois filhos, Jiang terá de arcar com uma pesada multa e, com o trabalho para o governo, perderia o emprego. Além disso, conta a médica, ter um filho na China exige bastante recurso com itens como educação. A moradia também consome um boa parcela do salário, especialmente em Pequim. O valor de um apartamento de apenas 100 metros quadrados na capital chinesa, em área mais central, pode custar até 10 milhões de renminbis, o equivalente a US$ 1,4 milhão. "Com dois filhos deixamos de viver na mesma casa de meus pais e precisamos de uma residência própria. Isso também sempre pesou na decisão, até 2015, de que um filho era suficiente", explica Jiang.
Zhan Wanli, que trabalha na área de seguros, também decidiu ter um segundo filho após 2015. Na família sempre houve um consenso familiar de que ter dois filhos era melhor do que um, já que a convivência de dois filhos ajuda as crianças estabelecerem a noção de se ajudar e se cooperar. "Em algum sentido, também dá a noção de competição para os dois e acreditamos que isso tem que ser acostumado desde criança para serem mais preparados para entrar na sociedade", pondera Wanli. Assim como Jiang, Wanli diz que criar um filho aqui na China, especialmente nas cidades grandes como Beijing, é excessivamente caro. Isso porque é comum nas famílias fazer pesados investimentos em educação. Em total, custam 65 mil remninbis (cerca de R$ 43 mil) cada filho por ano, ocupando mais de 25% do salário.
Família Zhan Wanli decidiu ter um segundo filho após 2015. Foto Arquivo pessoal/Divulgação/JC
O começo e o fim da lei do filho único
A China tem uma população gigantesca, de 1,3 bilhão de pessoas, atualmente, e, no início do século passado, isso foi motivo de preocupação com a segurança alimentar, por exemplo.
Com a adoção da lei do filho único, nos anos 1970, foi criada para reduzir o crescimento populacional. Ter dois filhos passou a ser permitido apenas para etnias minoritárias (na China existem mais de 50 etnias) e agricultores, que dependiam de mão de obra jovem para o trabalho. Fora desses grupos, quem tivesse mais de um filho sofria diferentes restrições e severas multas. Com a redução populacional, porém, o governo passou a ver problemas para o futuro, tanto com mão de obra quanto para sustentar, com seu trabalho, o sistema de previdência social. Por isso a lei do filho único foi suspensa em 2015, de olho no futuro.
Problemas na indústria chinesa de leite estimulam consumo de importados
Governo chinês vem valorizando novos fornecedores internacionais de alimentos
MARCO QUINTANA/JC/MARCO QUINTANA/JC
Como mais crianças consomem mais produtos lácteos, famílias como a de Wanli e Jiang vêm demandando mais leite, em pó e líquido, assim como iogurtes. De acordo com o chefe da divisão de defesa agropecuária da superintendente do Ministério da Agricultura no Estado, Leonardo Isolan, que esteve na China em 2019 participando das negociações para a abertura do mercado para as indústrias brasileiras, em 2016 já havia nascido 1,4 milhão de crianças mais do que em 2015.
"De um a média de pouco mais de 15 milhões de nascimentos por ano entre 2010 e 2015, a China passou para 17 milhões em 2016", explica Isolan.
Com esse incremento, de acordo com Isolan, em 2020, quando o fim da lei do filho único completa cinco anos, o governo chinês calcula que a natalidade anual terá alcançado até 20 milhões de bebês anuais.
Isolan também ressalta que os chineses dão prioridade à compra de produtos lácteos importados. O país registra recorrentes problemas em fábricas do setor. As restrições começaram há cerca de 10 anos, principalmente, quando milhares de pessoas, especialmente crianças, foram internadas em hospitais intoxicadas após consumir derivados de leite. O problema voltou a ocorrer ao menos outras duas vezes, entre 2010 e 2018, reforçando o hábito de consumo de importados. Ao mesmo tempo que abre mercado aos produtos brasileiros, a competição, porém, é grande, especialmente de produtos fabricados em países da Europa, Nova Zelândia e Austrália, países com vendas já consolidas no mercado chinês.
"A vantagem é que o governo chinês vem valorizando novos fornecedores internacionais e o consumidor tem um comportamento favorável a testar novos importados, tem maior poder de renda e com uma população de classe média crescente", avalia Isolan.