Logo após o último plano de Vitoria, o novo filme de Andrucha Waddington, aparece a dedicatória para Bruno Silveira, o cineasta que faleceu em 2022 quando havia apenas iniciado as filmagens da obra em cartaz. Ele foi um dos cultores do filme dedicado a grandes plateias, sem apelos para a grosseria e muito longe da vulgaridade. Conseguiu, assim, um grande êxito nas bilheterias com Os dois filhos de Francisco, no qual muitos viram, com razão, homenagens e referências a Humberto Mauro, o grande pioneiro no qual o amor pelo cinema se mesclou a uma procura incessante por uma forma de expressão autêntica, não contaminada por propostas vindas de fora. Estas, como se sabe, têm papel importante, quando não atuam apenas como modelos a serem copiados. Com toda a certeza, Silveira não pensou apenas em reconstituir um episódio real, no qual uma senhora idosa usou um instrumento derivado do cinema para registrar e depois denunciar o caos, a violência e a brutalidade que reinavam ao lado do apartamento onde morava. O papel da janela aberta para o mundo exterior vem de longe e provavelmente sua origem possa ser encontrada num dos clássicos de Alfred Hitchcock. Curioso, portanto, que a realidade faça lembrar uma obra de ficção, o que reforça a ideia de que o cenário que nos cerca está à espera de uma visão que revele a essência da sociedade em que vivemos.
Waddington não é apenas um substituto. Honra Silveira e, ao mesmo tempo, deixa claro competência e sensibilidade para colocar o espectador diante de um cenário difícil de contemplar. As cenas vistas e filmadas pela protagonista revelam a extensão de um grande fracasso, aquele que tem permitido, e sendo também uma de suas origens, o reinado da violência e da brutalidade.
Numa fase em que o cinema do País alcança repercussão internacional graças ao mais recente filme de Walter Salles, outro exemplo de obra voltada para a realidade, e também se destaca no mercado exibidor local, com Vitória, é importante ressaltar que este é o caminho: aquele povoado por personagens e não alegorias que apenas servem como meios para que alguns utilizem o cinema como instrumento para difundir panfletos e espalhar discursos demagógicos. Passada a época das veemências e da ira (sempre uma conselheira a ser evitada), parece ter chegado o tempo da reflexão e da procura de vidas verdadeiras, estas sim símbolos e resumos do que tem marcado nosso tempo. Algo bem claro no filme de Waddington é que ele não se limita a reconstituir um fato. A xícara quebrada é um exemplo de utilização de um elemento do cenário, para definir o que acontece atualmente. Algo decisivo foi destruído por elementos tão negativos quanto poderosos. As imagens registradas pela testemunha do horror próximo e invasivo são ao mesmo tempo realistas e simbólicas. É o grande horror contemplado e filmado. As tentativas de recompor o destruído são inúteis. As verdadeiras causas permanecem intocadas.
Outra parte do tema desenvolvido aparece nas respostas aos pedidos de providências e mesmo de socorro. Surgem então os entraves e as revelações de que omissões não são apenas consequências de incompetências e complicações geradas pela burocracia. Há algo mais grave, que pode ser traduzido por participação. O filme pode ser aproximado de clássicos do cinema italiano realizados nas últimas décadas do século passado, quando alguns cineastas enfrentaram obstáculos destinados a fazê-los recuaram e se omitirem, mas não desistiram. É o papel que agora exerce Vitória, que até no título faz valer a força de uma ironia crítica. Este também é um filme que deve muito a sua atriz principal, Fernanda Montenegro. Depois daquele primeiro-plano no filme de Salles, o rosto transformado na imagem de uma nação ferida, ela, agora ocupando quase todo o tempo de projeção, resume, com sua atuação, uma sociedade cujos valores surgem invertidos. Uma inocente tem que se esconder, enquanto as forças negativas exercem o poder. A sequência do rapto e da obrigação de recompor fisicamente um criminoso é um dos muitos momentos reveladores deste filme digno, competente e corajoso.