Ao chegar aos 2 milhões de espectadores, o filme Ainda estou aqui está transformando-se num dos maiores êxitos de bilheteria de nosso cinema, não apenas por atestar que parte expressiva do público mostra interesse por fatos acontecidos entre os anos de 1964 e 1985 - tempos de um regime que ao eleger a atividade cinematográfica como abrigo para inimigos da civilização ocidental muito prejudicou o setor, tanto no que se refere ao lado econômico como ao privar o público de se atualizar com novas tendências, além de tentar transformar a tela em algo desprovido de qualquer forma de crítica.
Para citar um exemplo do atraso, no ano de 1973, depois de terem sido liberados pela censura federal, dez filmes foram vetados e retirados de cartaz pela polícia em todo o Brasil, entre eles, uma comédia dirigida por Claude Lelouch, exibida até para crianças em outros países. Tratava-se de A aventura é a aventura, que acompanha as atividades de um grupo atrapalhado que pretendia enriquecer praticando sequestros. O filme foi aqui exibido pelo Victória e chegou a ser projetado durante alguns dias, pois tinha o certificado oficial de exibição em todo o território nacional.
O compositor e cantor Jacques Brel era um dos atores. O motivo da proibição foi que nos créditos finais, Lelouch faz uma brincadeira, colocando os nomes de pessoas famosas a serem sequestradas pelo grupo, conforme lista aprendida pela polícia. Entre os nomes de várias nacionalidades estava o de Pelé. Outros filmes retirados de cartaz foram Bananas, de Woody Allen, e Queimadas, de Gillo Pontecorvo, com Marlon Brando. Para fazer justiça, com a posse do novo governo, em 1974, os filmes foram liberados. Eis um exemplo, no setor cinematográfico, dos males que podem causar um regime autoritário. Os outros, ainda mais graves, como o assassinato de adversários políticos, o filme de Walter Salles trata de forma equilibrada e competente.
O longa protagonizado por Fernanda Torres está causando outro fenômeno interessante: a volta às salas exibidoras de muitos que haviam deixado de frequentá-las. É o que se conclui de muitas manifestações tornadas públicas de apoio ao filme, principalmente por ele reconstituir um dos episódios mais repugnantes acontecidos naqueles anos, sem que até hoje ele tenha sido devidamente esclarecido. Essa volta do público mais interessado deve ser saudada. Mas ela também revela algo que não tem sido abordado.
O fato de o filme ter superado a marca de 2 milhões de espectadores é realmente algo a ser saudado, mas que merece mais atenção. Dona Flor e seus dois maridos, versão do romance de Jorge Amado realizada por Bruno Barreto, em 1976, alcançou a marca de 12 milhões. E, mesmo assim, ficou distante de Titanic, com seus 18 milhões. Os números são implacáveis e demostram claramente que o mercado exibidor deixou de ser frequentado por parte expressiva da população, que aumentou consideravelmente nas últimas décadas.
Na edição do último dia 6 do jornal Valor, o sociólogo e professor da USP José de Souza Martins aborda o tema da redução de jornada de trabalho e cita o cinema como uma das artes que poderiam ser apreciadas com a medida e conclui o artigo colocando-o entre as "atividades que saciem nossa fome secular de saber e nos libertem da ignorância que nos barateia e nos oprime".
Outro motivo do filme estar obtendo uma repercussão que há muito tempo não era alcançada está o Oscar, esta premiação americana de tantas injustiças e acertos. Quando a televisão colocou a cerimônia de premiação na pequena tela doméstica não faltaram nacionalistas nos meios de comunicação a desprezarem tal iniciativa. O espetáculo do Oscar realmente tem aspectos dispensáveis e por vezes ridículos, isso para não falar em erros grosseiros na premiação. Porém, não há como negar sua influência nas bilheterias e na valorização de alguns filmes merecedores de todos os prêmios. A Academia de Hollywood, valorizando a aldeia global em que vivemos, está cada vez mais destacando filmes falados em diversas línguas, algo que os produtores de Ainda estou aqui estão sabendo aproveitar.