Exibido como o filme da abertura oficial do Festival de Cannes do ano passado, A favorita do rei, dirigido pela também atriz Maïwen, que aparece no papel principal - além de ser uma das roteiristas -, é uma nova versão do relacionamento de Louis XV com a célebre Jeanne Du Barry, que, nascida longe da aristocracia, terminou sendo uma das figuras mais célebres da época. Não é a primeira vez que o cinema dedica um filme para acompanhar sua ascensão. O pioneiro foi Ernest Lubitsch, que dirigiu, em 1919, Madame Du Barry, com Pola Negri e Emil Jannings nos papéis principais. No ano de 1954, Christian-Jacque realizou sua versão protagonizada por Martine Carol e Daniel Ivernel.
A nova narrativa das ligações do rei com uma mulher vinda de uma classe vista com desprezo pelos integrantes de uma aristocracia - que se julgava superior e vivia sob as imposições de rituais tão vazios como ridículos - acentua esse aspecto, principalmente na sequência do despertar do rei, cujo cerimonial, do qual participam várias pessoas, é contemplado em segredo pela protagonista. Em tal trecho, há uma troca de olhares marcados pela ironia entre a concubina e o representante máximo do poder. O senso de ritual é algo importante em qualquer encenação, mas o que se vê é uma corte transformada em obedientes intérpretes de uma coreografia sem espectadores, a não ser aquela que a tudo acompanha sem ser percebida - algo que transforma o espectador num observador privilegiado. A tonalidade é quase sempre essa: destacar o ridículo que não se manifesta apenas na reverência e na espécie de sapateado, utilizado para que ninguém dê as costas para o representante máximo da realeza.
O filme de Maïwen é daqueles que se caracterizam, principalmente pela correção formal. Tudo é perfeito, todas as cenas têm a duração certa, os atores e as atrizes são corretos, a fotografia cumpre sua função. A parte musical seria melhor se fosse composta por obras da época. Mas não há como negar que tudo tem bom nível. Porém, merece destaque o fato de que o filme é daqueles que se limitam a observar acontecimentos sem deles extrair conclusões e sem revelar verdades ocultas pelas aparências. Registra, por exemplo o casamento da protagonista com um barão, afim de que assim ela possa ter intimidade com o monarca. Mas ao desenvolver esse tema que aponta o movimento de alguém que, movido pelo interesse em se manter perto do poder, se submete a tal ridículo, permanece apenas na superfície. E no que se refere ao presente recebido pela agora pertencente ao círculo maior, a diretora deixa passar quase despercebido o tema do racismo. Visto como um elemento secundário, o personagem de Zamor passa da infância para a adolescência sem que o filme se interesse por sua trajetória, que só nos letreiros finais merece alguma atenção.
São várias as oportunidades perdidas. E também há uma contradição a ser destacada. Na cena da despedida final, a atriz e diretora se rende ao ritual, ao se retirar sem dar as costas ao rei. Só que desta vez o ritual é desprovido de ridículo como se o próprio filme encenasse uma reverência ao poder moribundo. Melhor seria se o filme, em seu todo, desse ênfase à atração que nasce entre os dois personagens - uma paixão que está acima das barreiras que separam classes. Não seria, portanto, uma rendição a rituais e sim um reconhecimento de algo verdadeiro, uma atração criada pelo desejo muitas vezes sufocado por convenções e regras disciplinares.
Porém, o filme parece procurar um equilíbrio impossível, rendendo-se a práticas ditadas para manter sufocados desejos e paixões. Escolhido pelos selecionadores do mais importante festival de cinema para abrir o desfile cinematográfico, eis um exemplo de que não deve haver restrições a críticas e preconceitos destinados a manter em terreno desconhecido fatos que, por vezes, podem contradizer o oficialismo e a tradição. É importante olhar para o passado e encontrar aquilo que o passar do tempo mostrou ser forças destinadas a deter novidades e a calar irreverências.