No ano de 1954, o cineasta italiano Luchino Visconti realizou o filme Senso, ambientado durante a ocupação da Itália pela Áustria. A obra, além de outros méritos, tem um prólogo que talvez seja o mais notável de toda a História do Cinema. Quando a projeção começa, presenciamos um trecho da ópera O trovador, de Giuseppe Verdi. Tudo é filmado como se o espectador do cinema estivesse vendo uma encenação operística. No entanto, concluídos os créditos iniciais, na medida em que a ação da ópera avança, a câmera se movimenta e fica claro que o filme transcorre durante um espetáculo assistido em grande maioria por italianos, além de vários oficiais austríacos. Num dos momentos mais conhecidos da ópera que está sendo apresentada, um dos personagens que comanda um grupo incentiva seu agrupamento a salvar a mãe, que está sendo ameaçada. É quando a plateia, se valendo do costume de aplaudir um cantor quando uma ária é bem interpretada, como que se integra ao espetáculo e não apenas aplaude o tenor, mas lança um incentivo para que a mãe-pátria seja libertada, gritando palavras de ordem e lançando panfletos sobre os militares estrangeiros. A mãe da ópera se transforma na Itália. A pátria-mãe precisa ser libertada. No filme Ainda estou aqui, Walter Salles tece, partindo de fatos reais, uma variação de tal tema. Agora reaparece na tela, de forma evidentemente superior a tentativas anteriores de nosso cinema, uma nação ameaçada e oprimida, representada por uma família agredida, símbolo de uma sociedade dominada por forças comandadas por elementos autodenominados protetores, agindo de forma desumana e truculenta.
A República Brasileira foi marcada por duas ditaduras. A primeira, chamada de Estado Novo, entre 1937 e 1945. Esta é pouco lembrada, mas não foi esquecida pelo cinema, pois, em 1983, Nelson Pereira dos Santos, realizou Memórias do Cárcere, baseado no relato autobiográfico de Graciliano Ramos, o mais notável de nossos filmes e com aquele belo final que trazia a ação, sem que a realidade cênica fosse alterada, para o período em que a nação se livrava de outra ditadura, a vigente entre 1964 e 1985, epílogo acompanhada pela Marcha Solene Brasileira, versão do Hino Nacional composta pelo americano Louis Moreau Gottschalk. Luís Sérgio Person foi outro que não esqueceu a primeira ditadura, realizando, em 1967, um de nossos melhores filmes, O caso dos Irmãos Naves, sobre um terrível erro judicial ocorrido em 1939, causado pelo gosto do autoritarismo vigente no período. Salles, agora, volta ao tema que tem aparecido em sua obra: os obstáculos enfrentados pela figura materna. E o faz reconstituindo uma fase mais difícil de nossa história recente: os quatro primeiros anos da década de l970, E o faz sem utilizar a técnica do panfleto e dando voz a uma mulher que, em nenhum momento, desistiu de provar que seu marido havia sido assassinado depois de ter sido convocado para prestar depoimento.
A personagem, sem dúvida, é um símbolo poderoso da resistência ao arbítrio e uma voz que não se calou e nem teve medo de externar sua inconformidade, como na cena do atropelamento do cachorro. Salles é preciso. Na perfeita cena do interrogatório, depois que o policial fala de sua função burocrática, um plano focaliza manchas de sangue no chão. Todo o elenco já foi justamente elogiado pelas suas presenças, mas a aparição nos momentos derradeiros de Fernanda Montenegro, nos dias finais de Eunice Paiva, é algo realmente impactante. A protagonista abatida por doença terminal se transforma na imagem de uma nação ferida pela brutalidade. E, quando o filme volta ao tema da fotografia, tudo se encerra com a família reconstituída. A nação recomposta. O filme de Salles, realizado a partir de um roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, é, mais do que uma reconstituição, uma eloquente advertência e uma significativa homenagem a uma personagem verdadeira que não deve ser esquecida. O filme também é uma lição de como focalizar os métodos de uma ditadura e suas consequências, sem focalizar diretamente a violência, mas deixando clara sua indignação.