Desde a primeira cena, Francis Ford Coppola deixa claro que Megalópolis vai desrespeitar todas as regras que regem o cinema voltado para a realidade cênica. E não só as relacionadas à forma de expressão na qual ele próprio sempre será um dos luminares, graças a filmes como Apocalypse Now, A Conversação e os integrantes da trilogia dedicada ao crime organizado na sociedade moderna. E não só o cinema voltado para o real é de certa forma questionado. Até as leis da gravidade e do equilíbrio são ignoradas. Parece até que iremos ver um desenho animado e não um filme focalizado em figuras reais, vivendo em espaço conhecido. E aqui começam os equívocos, tanto de parte dos que elogiam o filme, como daqueles que não escondem seu descontentamento. Há os que veem nele um manifesto contra a rotina e o apontam como um protesto contra a narrativa cultuada por todos os grandes do cinema americano, como se a realidade captada por uma câmera fosse algo imposto por Hollywood. O cinema realista sempre foi exercido por nomes como Bergman, Visconti, Renoir, Lean, Wajda, Rossellini e tantos outros. E mesmo Fellini, que várias vezes explorou o onírico, na cena final de Roma, quando os motociclistas são os novos bárbaros invadindo a civilização, soube sintetizar o tema abordado por Coppola sem deformar as leis fundamentais. Os que o criticam, entre esses os que ainda hoje elogiam Terra em transe, de Glauber Rocha, o acusam por diversos motivos, em evidente contradição, entre eles o de produzir apenas um filme caótico. Deixando de lado a adjetivação em tais manifestações, selecionando apenas a constatação de tais críticas, os dois grupos têm suas razões.
Em sua recente passagem por São Paulo, onde esteve presente no lançamento de seu filme, Coppola declarou, usando a ironia e deixando de lado aquela falsa seriedade que por vezes acomete estrelas do cinema e de outras áreas, que não se deveria levar muito a sério seu filme. E narrou também um acontecimento pouco conhecido ou mesmo ignorado. Durante o exílio em parte do regime militar - o cineasta voltou ao Brasil durante o governo Figueiredo e no documentário História do Brasil elogiou a abertura promovida pelo presidente Geisel - Glauber Rocha esteve em sua casa e recebeu apoio e solidariedade. Talvez Coppola, até por causa de tal amizade, conheça o já citado Terra em transe, pois é impossível não ver em Megalópolis influências daquela outra tentativa de impor alegorias à realidade, em vez de retirar desta o significado a ser contemplado. Eis um fato a ser destacado: um dos maiores cineastas do mundo partindo de um modelo criado por um cineasta de um país que em alguns momentos se destacou na cena mundial. Na época do lançamento de Terra em transe, um de seus admiradores citou Picasso para defender Glauber e suas investidas contra a realidade, lembrando que Les Demoiselles d'Avignon foi uma obra ridicularizada na época, esquecendo que elas não falam e são imóveis. Agora é Coppola que aposta num futuro no qual as formas reais não tenham suas formas alteradas, mas sim seu comportamento. E também a passagem do tempo.
A discussão tem sua importância, porém o espectador não deve esperar um filme realizado segundo propostas até hoje válidas, algo que o próprio Coppola provou em outros filmes. O projeto é arriscado e o fracasso nas bilheterias mundiais atesta tal afirmação. Eis um olhar sobre a crise atual como se ela fosse uma repetição dos conflitos vividos por Roma. Catilina e Cícero estão outra vez em conflito, mesmo que em papéis não exatamente iguais. Um arquiteto e humanista, vencedor do Prêmio Nobel, projeta não apenas uma cidade, pois pretende criar um mundo novo. Tem como inimigo um prefeito adepto de um pragmatismo que visa apenas o material. São famílias em conflito, assim como em Romeu e Julieta, sendo que Shakespeare também comparece com o célebre solilóquio do príncipe em Hamlet e na referência, através do primeiro nome do protagonista, a outra peça do bardo. Tudo é uma mescla de referências, citações e homenagens. Tudo forma aquilo que Coppola aposta ser o cinema do futuro, criado para ser visto por uma Humanidade formada pelo conhecimento e pela lucidez. Uma esperança contida no plano de encerramento.