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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 31 de Outubro de 2024 às 19:30

O Quarto Ao Lado, de Pedro Almodóvar: Dor revelada

Estrelado por Tilda Swinton, O Quarto Ao Lado é o mais novo longa do diretor Pedro Almodóvar

Estrelado por Tilda Swinton, O Quarto Ao Lado é o mais novo longa do diretor Pedro Almodóvar

WARNER BROS/DIVULGAÇÃO/JC
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Hélio Nascimento
James Joyce começou a escrever os contos reunidos em Os dublinenses quando tinha 22 anos. O conjunto formado por 15 relatos foi publicado pela primeira vez em 1914. A coletânea foi publicada no Brasil, no final dos anos 1960, pela Civilização Brasileira, em tradução de Hamilton Trevisan. A segunda edição foi publicada em 1970, revisada pelo tradutor. O último conto se intitula Os mortos e certamente a maioria dos que o leram coloca a obra entre as maiores do gênero. Trata-se de uma festa de fim de ano, durante a qual são discutidos temas políticos e muitas trivialidades são meticulosamente narradas. Tudo parece normal até que na saída, antes de enfrentar a neve e o frio, a principal personagem feminina se emociona e passa a ser dominada por imensa tristeza quando ouve a canção The Lass of Aughrim. O marido então questiona a mulher sobre as causas de seu comportamento e do isolamento ao qual se entrega. A canção - e a música exerce papel importante na obra de Joyce - era cantada por um amor de juventude, até então ignorado pelo esposo. Por que falar de um conto num espaço dedicado ao cinema? É que em 1987, pouco antes de morrer, John Huston, aos 81 anos, realizou Os mortos, que no Brasil foi exibido com o título de Os vivos e os mortos, o que não foi uma escolha inapropriada já que as últimas palavras do conto de Joyce são "sobre todos os vivos e todos os mortos", referência à neve que cai sobre a Irlanda. O filme de Huston tem no papel principal sua filha Anjelica e como roteirista o filho Tony. Foi exibido em Porto Alegre na Sala Norberto Lubisco, atualmente em reformas.
James Joyce começou a escrever os contos reunidos em Os dublinenses quando tinha 22 anos. O conjunto formado por 15 relatos foi publicado pela primeira vez em 1914. A coletânea foi publicada no Brasil, no final dos anos 1960, pela Civilização Brasileira, em tradução de Hamilton Trevisan. A segunda edição foi publicada em 1970, revisada pelo tradutor. O último conto se intitula Os mortos e certamente a maioria dos que o leram coloca a obra entre as maiores do gênero. Trata-se de uma festa de fim de ano, durante a qual são discutidos temas políticos e muitas trivialidades são meticulosamente narradas. Tudo parece normal até que na saída, antes de enfrentar a neve e o frio, a principal personagem feminina se emociona e passa a ser dominada por imensa tristeza quando ouve a canção The Lass of Aughrim. O marido então questiona a mulher sobre as causas de seu comportamento e do isolamento ao qual se entrega. A canção - e a música exerce papel importante na obra de Joyce - era cantada por um amor de juventude, até então ignorado pelo esposo. Por que falar de um conto num espaço dedicado ao cinema? É que em 1987, pouco antes de morrer, John Huston, aos 81 anos, realizou Os mortos, que no Brasil foi exibido com o título de Os vivos e os mortos, o que não foi uma escolha inapropriada já que as últimas palavras do conto de Joyce são "sobre todos os vivos e todos os mortos", referência à neve que cai sobre a Irlanda. O filme de Huston tem no papel principal sua filha Anjelica e como roteirista o filho Tony. Foi exibido em Porto Alegre na Sala Norberto Lubisco, atualmente em reformas.
Em seu primeiro longa-metragem falado em inglês, Pedro Almodóvar presta em O quarto ao lado uma dupla homenagem. Baseado num romance de Sigrid Nunez, o filme faz referências a Joyce, mais precisamente ao conto antes mencionado. Há um momento em que a jornalista pergunta à romancista se ela conhece o conto. Em outro, as duas protagonistas assistem ao filme de Huston, que tem a magnífica sequência final exibida para o espectador de hoje. E no epílogo do filme as palavras são variações do trecho final do conto. Quem não conhece o livro de Nunez fica impedido de afirmar que na verdade são três as homenagens ao autor de Ulisses. Mas nada impede de se afirmar que o novo filme do cineasta espanhol é um bom exemplo de peça que pode servir de excelente motivo para uma meditação sobre as relações ente cinema e literatura. Hábil diretor de intérpretes, Almodóvar coloca em cena não apenas personagens que marcam a ação como protagonistas. Fascinado pelo mais exagerado dos melodramas e grande admirador do cinema americano, ao qual fez várias referências em sua carreira, Almodóvar nunca foi apenas um cinéfilo dominado por modelos, sempre intervindo com inovadoras propostas narrativas, numa espécie de insolência criativa diante de opções tradicionais.
O quarto ao lado, assim como o filme de Huston, se aproxima de Joyce ao abordar o tema da morte e da permanência na memória de personagens e acontecimentos que parecem sobreviver, comandando comportamentos dos que deles nem sempre conseguem o necessário distanciamento. Uma sessão de autógrafos, um dos tantos rituais exigidos por regras contemporâneas, pode corresponder a um acontecimento festivo logo abalado por uma informação que coloca a dramaticidade na tela. E não se trata apenas da morte próxima. O relacionamento entre mãe e filha, na verdade o distanciamento ou o abandono de seres humanos, um tema que Almodóvar abordou em outros filmes, é igualmente abordado, enquanto, questões relacionadas ao meio ambiente e ao regime são expostas de forma superficial pelo personagem que exerceu papel na vida das duas amigas. Mais importante para o cineasta é o mundo interior de cada uma das personagens, os temores e as figuras que permanecem dominando-as. Uma das protagonistas é abalada pela presença da morte; a outra pelas dores de um passado que não se desvanece. Visualmente, a porta, talvez uma referência a Hitchcock, termina como símbolo de algo fechado e desconhecido. Mas o plano final é a volta ao tema da neve, contemplada com a serenidade dos vivos à espera do inevitável.
 

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