Woody Allen, 88 anos, 50 filmes. Poucos cineastas atingiram tal número. Poucos, também, chegaram a tal idade aumentando suas filmografias. Mais raros ainda os que alcançaram a veteranice mantendo a qualidade de seu trabalho e até enriquecendo suas filmografias com títulos significativos. O novo filme do cineasta, Golpe de sorte em Paris, que o próprio realizador insinua ser seu último trabalho no cinema - algo que seus admiradores esperam que não se materialize - merece ser incluído naquele grupo onde se encontram os títulos mais expressivos de uma carreira repleta de obras admiráveis. Não é a primeira vez que a cidade destacada no título escolhido para as exibições no Brasil - no original ela não é mencionada - serve de cenário para um relato escrito pelo cineasta, um dos verdadeiros autores do cinema mundial. É que, embora falado em francês, o filme não registra em suas imagens qualquer referência a símbolos da capital. Ao contrário daquele em que ao protagonista era permitida uma viagem até o passado da cidade e o convívio com alguns personagens que contribuíram para sua história, o de agora omite qualquer referência a episódios passados nos anos 1920 e a imagens universalmente conhecidas. A poesia aparece através de poucas citações, a atmosfera é recriada, mas o foco principal são os personagens que, até por seu passado, trazem a lembrança de Nova York, a cidade do autor.
Desde a cena inicial, um encontro casual e uma volta ao passado, o estilo do realizador se impõe pela clareza, a precisão dos diálogos e, principalmente, essa direção de intérpretes que valoriza a espontaneidade e a naturalidade de cada fala, de cada gesto, de cada olhar. É uma abertura notável e que parece revelar que Allen é um discípulo de George Cukor, que afirmava que, em cinema, a interpretação deve ser abandonada e substituída pela atitude a mais afastada possível de qualquer artificialismo. A atriz principal, Lou de Laâge, vive uma figura que tem o sobrenome de Moreau, que talvez seja uma homenagem de Allen àquela que durante sua carreira interpretou várias personagens vivendo dramas semelhantes. Ela vive uma figura que experimentou, no passado, aventuras marcadas pela irreverência, inclusive um casamento com um desses contestadores de superfície, e agora está casada com um representante da engrenagem oficial, um agente do processo destinado a fazer os ricos cada vez mais ricos. Os brinquedos, que sempre fazem os trens entrarem e saírem de túneis, são um elemento visual que exterioriza o infantilismo de sua personalidade e também releva sua face oculta. Nas cenas em que contrata os especialistas em resolver seus problemas, Allen utiliza quase sempre um cenário que, percorrido pelos personagens, se assemelha a túneis atravessados por quem pretende escapar da escuridão. Mas é impossível ocultar ou reprimir a agressividade, algo que, ao transformar o relato numa investigação digna de relato policial, o diretor e roteirista acentua de forma clara.
Há sempre um lado oculto. Com o auxílio do grande Vittorio Storaro, responsável pela fotografia, o realizador transforma o personagem numa espécie de figura de filme expressionista alemão dos anos de 1920, na cena em que ele ouve um diálogo entre a esposa e a sogra. A iluminação no rosto do personagem evidencia duas faces: a visível e a oculta, a luz e a sombra. Esse tema da violência oculta por rituais ditados por um cerimonial que impõe uma falsa cortesia, durante qual o passado serve de motivo para conversas aparentemente inocentes, é alterado e definido pela presença de armas distribuídas como se fossem apenas instrumentos de distração e recreio. Esse tema da natureza violentada é retomado através de uma variação que o torna mais dramático, na sequência que encerra a narrativa, antes de a protagonista se deparar com a incógnita da existência. O bilhete de loteria que ela tenta esconder do marido não tem o resultado divulgado, sendo mais um detalhe a ser destacado num filme que encena um drama movido pelo acaso, que não cessa de fascinar e de sempre trazer o novo para o centro do palco.