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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 18 de Setembro de 2024 às 19:00

O Bastardo, de Nikolaj Arcel: pioneirismo e tirania

Cena do filme 'O Bastardo', de Nikolaj Arcel

Cena do filme 'O Bastardo', de Nikolaj Arcel

HENRIK OHSTEN/ZENTROPA/DIVULGAÇÃO/JC
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Hélio Nascimento
O diretor Nikolaj Arcel, o cineasta de O bastardo, revela neste filme qualidades de narrador e também aquelas virtudes que enobrecem aqueles que, nos tempos atuais, mantém vivo o cinema de qualidade. Ele se inspirou na vida de Ludvig Kahlen (1700 - 1774) e também no romance de Ida Jensen sobre a carreira daquele capitão do exército dinamarquês. A própria Ida, em parceria com o diretor e Anders Thomas Jensen, é uma das responsáveis pelo roteiro. Mesmo que aborde acontecimentos históricos e se mantenha nos limites de um relato não afastado de uma biografia cinematográfica, centralizada numa figura conhecida dos dinamarqueses, o filme tem força para ser entendido por espectadores de qualquer nacionalidade. A ideia de que a universalidade da narrativa só pode ser alcançada pela fidelidade ao cenário original tem neste filme um exemplo vigoroso. Até porque esta fidelidade permite realçar o fato de que os dramas semelhantes a este ultrapassam fronteiras. Há certos temas que, por vezes, são prejudicados por nacionalismos hipertrofiados. No filme de Arcel este perigo fica distante. O realizador e seus roteiristas, pelo poder de síntese e pela forma como encenam certos episódios, sabem transformar o drama focalizado em algo tocado pelo universalismo. Eis um filme que é um modelo de narrativa histórica, marcado por momentos comoventes e impulsionado pela força gerada por uma visão ampla e profunda da história humana e dos conflitos gerados no desenvolvimento da civilização.
O diretor Nikolaj Arcel, o cineasta de O bastardo, revela neste filme qualidades de narrador e também aquelas virtudes que enobrecem aqueles que, nos tempos atuais, mantém vivo o cinema de qualidade. Ele se inspirou na vida de Ludvig Kahlen (1700 - 1774) e também no romance de Ida Jensen sobre a carreira daquele capitão do exército dinamarquês. A própria Ida, em parceria com o diretor e Anders Thomas Jensen, é uma das responsáveis pelo roteiro. Mesmo que aborde acontecimentos históricos e se mantenha nos limites de um relato não afastado de uma biografia cinematográfica, centralizada numa figura conhecida dos dinamarqueses, o filme tem força para ser entendido por espectadores de qualquer nacionalidade. A ideia de que a universalidade da narrativa só pode ser alcançada pela fidelidade ao cenário original tem neste filme um exemplo vigoroso. Até porque esta fidelidade permite realçar o fato de que os dramas semelhantes a este ultrapassam fronteiras. Há certos temas que, por vezes, são prejudicados por nacionalismos hipertrofiados. No filme de Arcel este perigo fica distante. O realizador e seus roteiristas, pelo poder de síntese e pela forma como encenam certos episódios, sabem transformar o drama focalizado em algo tocado pelo universalismo. Eis um filme que é um modelo de narrativa histórica, marcado por momentos comoventes e impulsionado pela força gerada por uma visão ampla e profunda da história humana e dos conflitos gerados no desenvolvimento da civilização.
Ser o primeiro num cenário inóspito é transformar-se num símbolo do ser humano em seu empenho de plantar na terra não apenas uma bandeira. É, também, criar um mundo no qual a aspereza, o vazio e o temor cedam lugar a uma jornada voltada para o futuro. Pode ser também, como no caso do filme, uma ação destinada a tornar protagonista o condenado, por preconceitos e deturpações, ao papel de coadjuvante, livre da condição imposta. Logo no início do filme a burocracia impera, a falta de ousadia reina e a ausência de visão domina. E o caminho só é aberto depois que o reino é convencido que só terá a lucrar com a tentativa proposta, cabendo todos os investimentos ao que é visto apenas como um aventureiro e um interessado em algum reconhecimento a ele negado por sua origem. As imagens que se seguem resumem e amplificam a luta e o trabalho humano para retirar da natureza os bens ocultos, mas não inexistentes. Mas a luta não se resume a tal esforço. Há também os elementos contrários, como sempre regidos pelo culto do poder com receio de qualquer gênero de inovação. É quando o filme expõe a crueldade sem limites, a abominável tortura praticada por um poder ameaçado pela eterna movimentação da história.
Sem qualquer tipo de sentimentalismo, o filme também se aproxima de forma contundente do humanismo sufocado pelas circunstâncias desfavoráveis a qualquer gesto de apoio a sentimentos humanitários. Está em cena o preconceito racial, que, no século XX, revelará toda a sua hediondez. E há também os gestos intimidatórios, as ameaças e a truculência de um poder incapaz de perceber a necessidade das mudanças. A austeridade do protagonista -exposta de forma precisa por um ator, Mads Mkikelsen, que nos brinda com uma aula de como interpretar em cinema - tem como contraponto a lenta formação de uma família humana, que aos poucos vai se agigantando na narrativa. Quando a história se completa, não da forma tradicional, mas de uma maneira a impor uma visão correta das derrotas e vitórias dos pioneiros, o filme termina por afirmar a proposta de utilizar personagens e fatos históricos para se aproximar de temas contemporâneos. O sofrimento imposto a criaturas dominadas por aparelhos de repressão sádicos são contestados não por discursos e panfletagem, mas por atitudes que exaltam o humanismo sempre necessário à cultura humana, uma barreira ao irracional e um escudo a servir de proteção contra a barbárie. Filmes como este são exceções no panorama atual e também se constituem em exemplos da solidez das barreiras destinadas a impedir o avanço dos dominados pelo primitivismo e pelo gosto da repressão.
 

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