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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 05 de Setembro de 2024 às 20:54

A crise maior

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O filme Testamento, de Denys Arcand, é o primeiro de um cineasta universalmente conhecido a atacar de forma direta certos movimentos que, nos últimos anos, resolveram apagar momentos históricos, tentando anular as leis da dialética. O cineasta expõe ao ridículo os chamados politicamente corretos e suas tentativas de cancelar e apagar momentos do passado e obras de arte que registraram momentos históricos. No caso do filme, tudo começa a se radicalizar quando um painel localizado em uma instituição destinada a abrigar idosos, e que registra o primeiro contato de europeus com os povos originários, é acusado de exaltar o colonialismo. Precisa, portanto, ser apagado. O movimento é comandado por um grupo de jovens claramente descendente de europeus e certamente interessados em imaginar um processo destinados a fazer a história parar num determinado período. Correndo o risco de parecer um adepto de uma tendência a evitar qualquer inovação em costumes, o cineasta na verdade segue aqueles que sabem que o passado é fundamental na construção do futuro. Constatar a importância do passado e sua ligação com o futuro, como disse Ortega y Gasset em uma conferência, "é a única maneira eficaz de não ser reacionário". Impossível negar a importância, devido ao choque e as reações inevitáveis que causou por sua ação, do colonialismo europeu. Até Karl Marx, esse sacerdote da dialética, reconheceu a importância do imperialismo britânico na Índia. E mesmo Antonio Gramsci aconselhou, em uma de suas cartas escritas no cárcere, ao filho pequeno a leitura do Livro da Selva, de Rudyard Kipling, que muitos veem apenas como um cantor do colonialismo. E também vale lembrar aquele ministro da cultura da China, que afirmou para seus conterrâneos que intelectual que não conhece a música clássica do Ocidente não merece ser assim chamado. É só trocar música por pintura para que a cena final de Testamento apareça como uma profecia. E, a continuar essa insanidade, até Os Lusíadas, obra que tem um trecho citado, em português, por Marx e Friedrich Engels, em A Ideologia Alemã, terá de ser queimada ou jogada no lixo, como os livros numa cena de Testamento. Aliás, esta cena, embora não tão radical, lembra aqueles documentários que registraram as fogueiras praticadas por estudantes guiados pelos nazistas.
O filme Testamento, de Denys Arcand, é o primeiro de um cineasta universalmente conhecido a atacar de forma direta certos movimentos que, nos últimos anos, resolveram apagar momentos históricos, tentando anular as leis da dialética. O cineasta expõe ao ridículo os chamados politicamente corretos e suas tentativas de cancelar e apagar momentos do passado e obras de arte que registraram momentos históricos. No caso do filme, tudo começa a se radicalizar quando um painel localizado em uma instituição destinada a abrigar idosos, e que registra o primeiro contato de europeus com os povos originários, é acusado de exaltar o colonialismo. Precisa, portanto, ser apagado. O movimento é comandado por um grupo de jovens claramente descendente de europeus e certamente interessados em imaginar um processo destinados a fazer a história parar num determinado período. Correndo o risco de parecer um adepto de uma tendência a evitar qualquer inovação em costumes, o cineasta na verdade segue aqueles que sabem que o passado é fundamental na construção do futuro. Constatar a importância do passado e sua ligação com o futuro, como disse Ortega y Gasset em uma conferência, "é a única maneira eficaz de não ser reacionário". Impossível negar a importância, devido ao choque e as reações inevitáveis que causou por sua ação, do colonialismo europeu. Até Karl Marx, esse sacerdote da dialética, reconheceu a importância do imperialismo britânico na Índia. E mesmo Antonio Gramsci aconselhou, em uma de suas cartas escritas no cárcere, ao filho pequeno a leitura do Livro da Selva, de Rudyard Kipling, que muitos veem apenas como um cantor do colonialismo. E também vale lembrar aquele ministro da cultura da China, que afirmou para seus conterrâneos que intelectual que não conhece a música clássica do Ocidente não merece ser assim chamado. É só trocar música por pintura para que a cena final de Testamento apareça como uma profecia. E, a continuar essa insanidade, até Os Lusíadas, obra que tem um trecho citado, em português, por Marx e Friedrich Engels, em A Ideologia Alemã, terá de ser queimada ou jogada no lixo, como os livros numa cena de Testamento. Aliás, esta cena, embora não tão radical, lembra aqueles documentários que registraram as fogueiras praticadas por estudantes guiados pelos nazistas.
Mas Arcand, que em seus filmes anteriores já tinha meditado sobre a crise no Ocidente, não é um irado e muito menos um total descrente com o futuro, mesmo que aquele final, no qual o Oriente aparece como salvador de nossa cultura, seja o encerramento da narrativa. O cenário do cemitério das cenas iniciais é substituído por um parque no qual o futuro é conduzido. E o próprio protagonista afirma estar preocupado com o aquecimento global, algo que provavelmente antes ignorava, juntando-se assim a ações justas e aliando-se aos que mostram, em outro campo, preocupações com um futuro que poderá ser salvo pelo conhecimento. Em outros momentos o filme não deixa dúvida que seu autor vê como ridículos certos rituais que poderiam ser evitados, como os de premiações inúteis e o desprezo pelas antigas gerações. A cena em que o protagonista é desconvidado e praticamente impedido de participar de uma cerimônia sintetiza a obtusidade de certos grupos. E os discursos dos políticos, citando inúmeras siglas a fim de escapar de suas responsabilidades, discursos estes acompanhados pelo sono de colegas com cargos importantes, forma um quadro muito conhecido por todos. Não falta mesmo a ira moralista, que procura ocultar uma atração que, ao ser aceita, apaga a vigilância movida pela hipocrisia, e se transforma num sinal de esperança. A questão cultural, certamente a mais importante para que o conhecimento se transforme em ação defensora de valores verdadeiros, é abordada de forma direta e clara por Arcand. Se o cinema, numa época em que o culto de futilidades parece dominante, com as nobres exceções de sempre, é capaz de produzir um filme como este, eis um sinal para que outros cineastas, principalmente os que agora iniciam a carreira, saibam olhar para uma realidade que, como sempre, contém ameaças e também formas de apoio para que os descontentes que não percam a lucidez.
 

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