Porto Alegre,

Anuncie no JC
Assine agora
Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 15 de Agosto de 2024 às 21:17

Máquinas humanas

Compartilhe:
Hélio Nascimento
Há duas formas de ilustrar a transformação de indivíduos em peças de uma engrenagem: mostrando tarefas rigorosamente compridas ou registrando contra elas reações geradoras de conflitos, alguns adaptados, outros gerando inconformidades e ressentimentos. Esse processo não poderia estar ausente do cinema, esse instrumento de captação da realidade, o primeiro a recriar o movimento e capaz de guardá-lo em imagens, preservá-las para o futuro.
Há duas formas de ilustrar a transformação de indivíduos em peças de uma engrenagem: mostrando tarefas rigorosamente compridas ou registrando contra elas reações geradoras de conflitos, alguns adaptados, outros gerando inconformidades e ressentimentos. Esse processo não poderia estar ausente do cinema, esse instrumento de captação da realidade, o primeiro a recriar o movimento e capaz de guardá-lo em imagens, preservá-las para o futuro.
Quem hoje pode ver os trabalhadores de Coal face, o registro de Alberto Cavalcanti sobre os mineiros ingleses, um dos pontos altos do documentário britânico dos anos 1930; Stravinsky já idoso regendo em Londres seu Pássaro de fogo, registrado por operadores anônimos da televisão; as manifestações de Churchill, De Gaulle e Roosevelt durante a Segunda Guerra Mundial (e mesmo de Hitler e Mussolini, revelações de métodos fascistas, e a saudação pública gravada para sempre dos serviços sonoros na Praça Vermelha, com imagens de cidadãos em posição de respeito e admiração, classificando Stalin como o maior gênio produzido pela humanidade...); todos os que desfrutam ter acesso quase integral à história têm o direito de imaginar quanto seria fascinante ver acontecimentos e personagens marcantes registrados por algum processo de captação de imagens e sons em períodos anteriores ao cinema. Fica a critério de cada um eleger momentos decisivos e personagens que permanecerão para sempre em livros, quadros e estátuas. Mas sem o direito ao movimento e a um cenário que o cerca com revelações fundamentais.
Na lista publicada por uma revista americana dedicada à economia, resultante de uma enquete com economistas a fim de selecionar obras necessária para um entendimento do mundo atual, apareceram dois filmes: A grande ilusão, de Jean Renoir, e Tempos modernos, de Charles Chaplin. No primeiro, através da figura do oficial vivido por Erich von Stroheim, fica colocada em cena o fascínio e a obediência diante de normas estabelecidas e o senso de uma classe ameaçada ante o surgimento de duas forças novas, algo que se fortalece quando a neve cobre fronteiras e apaga nacionalidades, o que pode ser visto como visão do futuro que hoje vivemos. No segundo, talvez o mais brilhante na filmografia chapliniana, o homem é dominado por uma engrenagem gigantesca e de certa forma se iguala a parafusos decisivos para a movimentação de uma engrenagem. Antes de Chaplin, Fritz Lang em Metropolis e Rene Clair em A nós a liberdade, o primeiro vitimado por um epílogo ingênuo e o segundo antecipando o filme de Chaplin na captação inconformada com a realidade, abordaram o tema. Os filmes citados são exemplos de obras encenadas com o objetivo de colocar o espectador diante de temas ausentes em outros meios de comunicação modernos por interesses corporativos e a cumplicidade dos encarregados em passar mensagens superficiais,
Os filmes de Lang, Renoir e Chaplin encenam ou copiam realidades, enquanto os de Cavalcanti e o trabalho de cinegrafistas anônimos transformam em algo concreto para as futuras gerações aquilo que para nós, em casos semelhantes e mais antigos, somente é alcançado pela fantasia e a imaginação. Se por um lado podemos imaginar fatos ocorridos antes da imagem em movimento, por outro é impossível deixar de saudar a importância de uma tecnologia capaz de preservar imagens fundamentais. Mas um fato é lamentável: aquele expresso no final de Boa noite e boa sorte, o segundo filme dirigido por George Clooney, sobre aqueles que dispondo de tempo e espaço e que poderiam buscar diálogos que pudessem contribuir para o aprimoramento geral se dedicam a futilidades. Esta característica de nosso tempo não domina totalmente o cenário, mas ergue um muro bastante alto que impede a passagem do conhecimento e a lucidez. E para citar clássicos de nossa época: em 2001, Kubrick ressalta que não há força suficiente para deter o tempo e a vida, antes de alertar, em Laranja mecânica, que muito do que se encontra oculto pode aproveitar a hipocrisia e o cinismo para aparecer como uma ameaça. Mesmo que acompanhado por duas odes à alegria: a de Beethoven e a de um musical americano, recentemente colocado entre os dez maiores filmes de todos tempos por críticos e historiadores de vários países.
 

Notícias relacionadas