Jean-Luc Godard (1930 - 2022) declarou certa vez que ele dizia Charlot (Carlitos) como quem diz Leonardo, e Chaplin como quem diz Da Vinci. E acrescentava que ao realizador inglês os cineastas deviam tudo, desde o plano-sequência em Rua da paz até o cinema-verdade na cena final de O grande ditador. O cineasta francês, que, como crítico, exaltava a produção B americana e depois, como diretor prestou várias homenagens aos filmes produzidos por empresas de pequeno porte, chegando mesmo a dedicar seu primeiro longa-metragem, Acossado, à Monogram, apenas confirmou as opiniões dos mais fervorosos admiradores do gênio realizador de Tempos modernos. Mas também ressaltou, sem tornar explícita essa outra lição, que o cinema necessita de personagens.
A época dos primeiros passos de Chaplin é também o tempo de panfletos como O encouraçado Potemkin (definição do próprio autor) de Serguei Eisenstein (1898 - 1948) e dos painéis de David Wark Griffith (1875 - 1948). O primeiro, nascido na Letônia e integrado ao cinema soviético, abandonou o cotidiano dos seres humanos para colocá-los como personagens simbólicos de passagens revolucionárias. Griffith, antes dele, havia praticamente criado a linguagem cinematográfica em Nascimento de uma nação e Intolerância e havia sido chamado por Eisenstein de o mestre de todos nós, referindo-se a ele próprio e aos colegas de geração, empenhados em criar um cinema revolucionário também na busca de uma nova forma de expressão. Mas foi Charles Chaplin (1889 - 1977), na aparente simplicidade quando da formação da imagem, na captação do gesto, no olhar e na integração do cenário que deixou a grande lição: cinema é, sobretudo, criação de personagem.
O criador e pioneiro Louis Lumière (1864 - 1948), ao dar preferência aos documentários, não apenas foi um inventor: deixou clara a missão principal do novo meio de expressão. Ao dar movimento à fotografia, ele subordinou a nova técnica ao domínio da realidade. A partir desse primeiro passo deu ao cinema sua primeira lei. Quando George Méliès (1861 - 1938), um mágico de profissão, percebeu no cinema a possibilidade de um aumento do fascínio do ilusionismo, seus personagens foram até a Lua e assim se abriu para a fantasia espaços na arte das imagens e movimentos. Em 2001: uma odisseia no espaço, Stanley Kubrick (1928 - 1999) uniu as duas tendências, sem esquecer o fundamento principal, o da criação de personagens. Godard, que muitas vezes atravessou a fronteira que separa filmes marcantes de obras prejudicadas por ambições não concretizadas e por dispensáveis exibições de erudição, deixou vários trabalhos que refletiram uma época e certamente permanecerão na galeria dos melhores, como Week-end à Francesa, O desprezo, e a comédia Uma mulher é uma mulher, bela homenagem ao teatro, ao musical americano e à ópera. Seus companheiros de nouvelle vague, principalmente François Truffaut (1932 - 1984) e Claude Chabrol (1930 - 2010), preferiram ficar no terreno da realidade, sendo que o primeiro deles, em A noite americana, realizou a mais bela homenagem ao cinema até hoje feita.
O título do filme de Truffaut diz tudo. A noite é recriada através da técnica, mas é habitada por seres humanos verdadeiros. Numa cena belíssima, impulsionada pela música, "o cinema reina". Os críticos e depois cineastas -Godard também dizia que a diferença entre um e outro é apenas quantitativa - que se destacaram em Paris nas décadas de 1960 e 70 do século passado, além de alguns exageros, tiveram o mérito de destacarem obras de diretores como Raoul Walsh (1887 - 1980) Joseph Mankiewicz (1909 - 1993) e Vincente Minnelli (1902 - 1986). Numa cena de O desprezo, Godard cita uma cena de Deus sabe quanto amei, realizado pelo terceiro citado. Os cineastas lembrados não foram os únicos reabilitados ou descobertos e formaram um grupo de realizadores que não podem faltar em qualquer antologia dedicada a exaltar os momentos altos do cinema. Além do mais, já não é possível retirar da lista dos maiores nomes como Alfred Hitchcock (1889 - 1980) e John Ford (1985 - 1973), outros que permaneceram fiéis às leis básicas, aquelas que exigem realidade e personagens.