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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 25 de Julho de 2024 às 19:53

O caso Mortara

Filme O Sequestro do Papa, do diretor Marco Bellocchio

Filme O Sequestro do Papa, do diretor Marco Bellocchio

O SEQUESTRO DO PAPA/REPRODUÇÃO/JC
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Hélio Nascimento
O diretor Marco Bellocchio, nascido em 1939, é outro veterano a manter vivo o cinema maior. Dois de seus primeiros filmes, De punhos cerrados, realizado em 1965, e A China está perto, produzido em 1967, o colocaram entre os nomes que integravam o grupo renovador do cinema italiano. Infelizmente, a época não era propícia a que chegassem aqui obras que investiam contra valores vigentes no período. Vítima do desinteresse de exibidores temerosos da ação da censura, que causou prejuízos culturais e econômicos ao setor cinematográfico, Bellocchio foi praticamente esquecido antes de voltar às telas brasileiras com O diabo no corpo e Vincere, realizados, respectivamente, em 1986 e 2009.
O diretor Marco Bellocchio, nascido em 1939, é outro veterano a manter vivo o cinema maior. Dois de seus primeiros filmes, De punhos cerrados, realizado em 1965, e A China está perto, produzido em 1967, o colocaram entre os nomes que integravam o grupo renovador do cinema italiano. Infelizmente, a época não era propícia a que chegassem aqui obras que investiam contra valores vigentes no período. Vítima do desinteresse de exibidores temerosos da ação da censura, que causou prejuízos culturais e econômicos ao setor cinematográfico, Bellocchio foi praticamente esquecido antes de voltar às telas brasileiras com O diabo no corpo e Vincere, realizados, respectivamente, em 1986 e 2009.
Seu novo filme, O sequestro do Papa, é outra vítima, desta vez dos distribuidores brasileiros, que resolveram colocar no filme um título que distorce o sentido da narrativa e tenta iludir o espectador. O filme, originalmente, se intitula O rapto e nada tem a ver com um possível ato de violência contra o Sumo Pontífice. O filme, que integrou a mostra principal do Festival de Cannes, na verdade reconstitui um fato verídico, ocorrido no século XIX, quando a Igreja Católica mantinha poder nos Estados Pontifícios. Sequestrado foi o menino Edgardo Mortara Levi por ordem do Papa Pio IX, depois de ter sido revelado que ele havia sido batizado secretamente. Edgardo, que viveu entre 1851 e 1940, teve educação cristã e optou por se integrar a uma religião que não era a da sua família. Na época, o caso teve ampla repercussão, depois foi abafado e mais tarde objeto de estudos e livros, e agora aparece nas telas num filme poderoso e marcado por uma dramaticidade que não se limita a permanecer presa a um fato histórico, pois amplia o foco no rumo de um relato sobre como o poder é capaz de moldar uma alma, transformando-a e a submetendo a um controle que se equipara a uma verdadeira lavagem cerebral, esse método que não é limitado a determinada corrente ideológica, pois se espalha por onde predomina o desejo de submeter o ser humano a várias formas de repressão.
Assim como em Vincere, que trata de reconstituir o padecimento de Ida Dalser, amante de Benito Mussolini, antes deste se transformar em líder do fascismo italiano e chefe supremo do governo, tendo ela e o filho do futuro ditador sido internados em hospitais psiquiátricos, onde morreram, com o objetivo de apagar o passado do chefe, Bellocchio não está apenas interessado em reconstituir um fato. Seu objetivo é outro. Partindo da realidade, ele pretende, através de situações e imagens, atingir a essência de um regime de força. De certa forma, ele antecipa, em Vincere, o que mais tarde irá desenvolver em Il Rapito, este o título verdadeiro do filme em cartaz.
Em muitas cenas isto fica bem claro. Numa delas, Edgardo é obrigado a se humilhar fazendo cruzes com a língua no chão, cena que lembra uma semelhante em Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, quando o jovem transgressor é obrigado a gesto semelhante, transformado num ser obediente e servil. Em muitas passagens do filme, Bellocchio narra de forma paralela rituais de ambas as religiões, revelando assim semelhanças e aproximações. Mesmo a realidade, a conversão de Edgardo ao catolicismo, não é visto de forma a aproximar o relato de algo a revelar qualquer gênero de panfletagem.
O acerto está no fato de ser feita a constatação dos métodos destinados a moldar um indivíduo e fazê-lo agir de acordo com as determinações de uma autoridade maior. Na verdade, o que se vê no filme são dois pais, um biológico e outro simbólico - basta ver a cena em que o Papa coloca no colo a criança tirada de sua família - uma equiparação ressaltada pela violenta cena que registra uma ameaça de defenestração. O cinema italiano, que também brilha com Ainda temos o amanhã, de Paula Cortellesi, nos oferece, assim, duas lições que merecem ser devidamente apreciadas. Os panfletos e comícios cinematográficos são dispensáveis. O que vale realmente é este olhar criativo sobre a realidade, seja ela reconstituída ou trazida para as telas de forma a revelar complexidades atuantes em todo o processo destinado a manter os seres humanos devidamente integrados a sistemas nem sempre ditatoriais, mas nunca abandonando normas disciplinadoras.
 

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