A estreia na direção da atriz Paola Cortellesi não é apenas uma surpresa. Vivendo ela mesma o papel principal de Ainda temos o amanhã, uma clara homenagem à escola neorrealista italiana, ela não apenas revela seu interesse por aquele período cinematográfico de seu país como realiza um filme dotado de inúmeras virtudes. Entre as quais, estão inovações na maneira de contemplar a realidade e extrair delas significados que permitem, ao serem colocados na tela, conferir às imagens a indispensável atualidade e também por extrair delas um simbolismo e uma força que certamente superam qualquer passagem de tempo. O filme, sem dúvida, não é somente uma homenagem a uma escola de cinema, colocando-se também como um instrumento para que seja entendido o processo que impôs forças repressoras e causou a revolta que abriu janelas para o advento de novos valores.
A diretora e protagonista é também uma das responsáveis pelo roteiro, em parceria com Furio Andreotti e Giulia Calenda, de modo que, atuando em três funções, permite que lhe seja concedido o título de autora do filme. Mas é necessário, a fim de diminuir um superficial entusiasmo de alguns, que a escola neorrealista italiana não foi a primeira a exaltar o papel de homens e mulheres nos avanços que destacaram o papel de pessoas desconhecidos no desenvolvimento das sociedades. Jean Renoir em Toni, realizado em 1934, e os documentaristas que trabalharam no Reino Unido na década de 1930, entre eles o brasileiro Alberto Cavalcanti, já tinham dado os passos iniciais em tal marcha.
E também é necessário alertar que Roberto Rossellini, antes de realizar Roma, cidade aberta, em 1946, não era um jovem (nasceu em 1906) e já havia rodado filmes durante o período fascista. Outro nome destacado do movimento, Vittorio De Sica, era da mesma geração e havia sido um astro da música popular e também atuado como ator e diretor na série do "telefone branco", marca registrada do cinema do período fascista. Tal constatação não diminui e nem procura desvalorizar o papel deste e outros nomes que tanto enobreceram o cinema italiano a partir de 1945, até porque alguns deles participaram de movimentos de resistência.
Cortellesi inicia seu filme utilizando a janela antiga e só depois dos créditos iniciais recorre à proporção atual. Mas o preto e branco permanece até o final. Numa época em que tanto se exalta os efeitos especiais, merece ser saudado um filme que abdica de todas as inovações técnicas - menos as sonoras muito bem utilizadas - e não produz saudosismo mas reforça a tese de que o cinema maior é aquele que se concentra na observação do real. Porém, a diretora não é contrária à fantasia inerente à condição humana. Seu filme pode exaltar o passado, mas não é reacionário.
Ao filmar o mais estranho pás-de-deux até hoje visto no cinema (propositadamente grosseiro), ela inverte o sentido de tal forma, que tem um dos momentos altos no cinema, no filme A roda da fortuna, que Vincente Minnelli realizou em 1953, quando a bela coreografia de Michael Kidd expressa o encontro e a união de um casal - Fred Astaire e Cyd Charisse - cena utilizada no documentário Santiago, de João Moreira Salles. Aqui é a violência tendo a mulher como vítima, que expõe com clareza a essência do regime chefiado por Mussolini, cujas leis permanecem ocultas no pós-guerra, causando sofrimento e aprisionando seres humanos.
Eis um filme sem discursos e panfletos que olha para a tirania e seus produtos como a misoginia e o culto da violência. Trata-se de todo um ritual no qual a ausência de valores predomina e o descontrole emocional comanda as ações. As resistências, que abrem espaço para um soldado negro americano, origem de uma das surpresas do roteiro, terminam numa cena - outro trecho inesperado - que de certa forma atualiza a narrativa.
E há também um olhar duro sobre o predomínio de uma geração sobre a outra, pois três delas são comandadas por simplificações e o culto do domínio, algo que vai sobrevivendo ao passar do tempo, como um resíduo a ser eliminado. E os momentos de humor fazem lembrar que a comédia humana é tão ampla como preciosa. O filme de Paola Cortellesi faz retornar à cena o tradicional aviso: programa obrigatório.