Desaparecimento, certamente, é uma palavra difícil de aceitar. Mas nos parece a mais acertada ao ser confirmada o fechamento, ao que tudo indica definitivo, do Victória, uma sala de exibição que durante décadas foi uma das melhores e mais bem cuidadas da cidade. O cinema foi palco de acontecimentos que não deveriam ser esquecidos. Um deles, justamente o que de certa forma desmente certas lembranças de um passado cultural marcado por algum nível, é aquele relacionado ao lançamento de Cidadão Kane, o clássico de Orson Welles, realizado em 1940 e habitual frequentador de listas dos melhores de todos os tempos. Após suas primeiras exibições, numa segunda-feira, como era hábito na época, a gerência do cinema, diz a lenda, depositou a cópia na calçada e telefonou à distribuidora que a recolhesse, pois tal lixo não deveria continuar sendo exibido.
Tal história era narrada por funcionários de diversas distribuidoras muitos anos depois, pois faz parte do folclore cinematográfico de Porto Alegre. Mas o que ficou registrado é que o filme permaneceu apenas um dia em cartaz. Uma testemunha narrou que a obra na primeira exibição foi exibida sob vaias. Outro fato revelador sobre como o cinema era visto na época por certos círculos ocorreu em junho de 1951, quando da exibição de O casamento de Chifon, de Claude Autant-Lara, então um dos nomes mais prestigiados do cinema francês. O filme, ambientado na primeira década do século passado, tinha aviadores como protagonistas. E, como não fazia menção a Santos Dumont, deixou indignados alguns espectadores ligados à aviação, que pediram sua proibição em carta a jornais. Foram prontamente atendidos pelos responsáveis pelo cinema, que retiraram o filme de cartaz, inclusive manifestando orgulho por tal atitude, algo que expõe com clareza a mentalidade vigente naquele período.
Mas o cinema que agora encerra suas atividades não foi marcado apenas por histórias comprometedoras. Com o nome de Vera Cruz, ele foi inaugurado em 4 de setembro de 1940, com as exibições de A mulher faz o homem (Mr. Smith Goes to Washington), de Frank Capra. Devido a problemas sobre sua propriedade esteve fechado durante algum tempo e voltou a funcionar, com nome de Victória, em 12 de setembro de 1953, com as exibições de A dupla do barulho, realizado por Carlos Manga e tendo nos principais papéis Grande Otelo e Oscarito. Antes, quando ainda se chamava Vera Cruz, o cinema lançou aqui o filme Moleque Tião, realizado em 1943 por José Carlos Burle, tendo Grande Otelo como protagonista. Este filme, tido como um pioneiro pela abordagem de problemas sociais, não pode mais ser visto, pois o negativo e todas as cópias foram perdidas Na fase iniciada em 1953, o Victória exibiu alguns filmes hoje clássicos, como Rastros de ódio, que o grande John Ford realizou em 1956. O filme Vertigo, de Alfred Hitchcock, outro dos grandes momentos da arte cinematográfica, também chegou aqui na tela do Victória. Em dezembro de l975, contrariando uma tradição de não lançar filmes importantes nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro - e de certa forma inaugurando uma nova fase - o cinema lançou Tubarão, de Steven Spielberg, obtendo grande êxito nas bilheterias.
O declínio começou com um novo fechamento em 1998. A reabertura, em 14 de maio de 1999, divido em duas salas, durou poucos anos e, quando uma das salas reabriu, em 20 de julho do ano passado, a programação, que nada tinha a ver com o nome cult então utilizado, não encontrou público interessado, até porque nenhum título exibido merecia ser chamado daquela forma. Um erro, claro, mas não o único responsável pelo fracasso da iniciativa. O equívoco, que evidencia o desconhecimento das tendências atuais, se juntou à decadência de uma região da cidade que perdeu, por motivos amplamente conhecidos sua capacidade de atrair público. - A referência ao acontecido com o filme O casamento de Chifon foi feita graças ao arquivo do saudoso Ary Neves Mendonça, um dos nomes mais importantes na história do Clube de Cinema de Porto Alegre.