Aos 79 anos de idade, o cineasta australiano George Miller não desiste de sua série iniciada em1979 com Mad Max e na qual mostrava um mundo em ruínas, no qual grupos lutavam por sobrevivência e poder utilizando os restos de uma tecnologia que havia atingido o apogeu antes da grande catástrofe. Furiosa é mais um capítulo de uma sequência de filmes que tratam deste tema, utilizando - e por vezes exagerando - recursos utilizados em filmes de menor importância e interessados em divertimentos desprovidos de maior significado. Colocado entre os veteranos que não desistem do cinema, para proveito e alegria dos que seguem acompanhando a evolução desta arte, a primeira nascida desde que o ser humano em imagens, letras e sons procurou recriar a realidade e assim expondo verdades ocultas num primeiro e superficial contato.
Décadas atrás, quando o que mais levado a sério era um cinema que procurava se aproximar da tradição criada em séculos, alguns críticos, sobretudo os franceses dos Cahiers du Cinéma, modificaram a visão da crítica, ressaltando obras de cineastas como John Ford, Vincente Minnelli, Alfred Hitchcock, Howard Hawks e Joseph L. Mankiewicz, além de outros. Hoje, todos são clássicos. Um filme como Cantando na chuva, realizado por Stanley Donen e Gene Kelly, por exemplo, foi incluído na lista dos dez maiores de todos os tempos pela revista londrina Sight and Sound, numa consulta feita com cineastas, historiadores e críticos de vários países. Mas na época a obra foi vista apenas como um divertimento feito de forma perfeita. Poucos perceberam, entre outras coisas, que o número que servia de título ao trabalho era uma alegoria sobre a irreverência diante do poder, em plena época do macarthismo.
Furiosa, mesmo com as concessões feitas a um certo tipo de cinema medíocre e espalhafatoso feito hoje em dia - o que justifica a observação feita por Woody Allen em Dirigindo no escuro - é filme interessante por vários motivos. A primeira missão de um cineasta é expressar visualmente o cerne do tema tratado. As imagens do filme, com a exceção dos planos iniciais, mesmo assim conturbados por criaturas deformadas, mostram ao espectador um universo dominado pela violência e por uma agressividade que parece nascer em cada indivíduo, antes de se espalhar pela sociedade inteira. Estamos, sem dúvida, diante de uma sátira dramática ao mundo em que vivemos.
No cinema, onde a imagem deve ser o elemento dominante, por vezes a palavra se integra ao todo, a fim de conceder maior clareza e potência à alegoria. É o caso das referências à guerra, essa expressão máxima da agressividade humana, quando são feitas alusões ao tempo presente e também a um ameaçador colapso derradeiro. São manifestações de personagens que parecem, cada uma a seu modo, expressar as intenções do cineasta. E ironias não faltam, inclusive com certos nomes de alguns personagens.
O mais curioso no filme de Miller, no entanto, é a utilização dos restos deixados pela civilização. Em primeiro lugar duas referências a outro ciclo, o wagneriano dedicado ao anel que possibilita o máximo poder, e também a Darwin, que não poderia faltar num relato que descreve tentativas de alcançar melhores condições para a sobrevivência. Pinturas renascentistas fazem parte das imagens e, por vezes, parece que estamos vendo um filme bíblico. E os carros - em especial a velocidade por eles atingida - não deixam dúvida sobre qual tempo o filme está falando, até porque, em certas passagens, as imagens parecem exaltar as habilidades de dirigir um veículo.
Se Miller, em vez de longas e repetitivas cenas de ação, se dedicasse a mostrar a harmonia e a felicidade de uma criança destruídas, o filme seria outro, mais valioso. Porém, ficam o boneco, que de certa forma sintetiza o tema e a semente que pode significar um recomeço. E atenção para o terno e a gravata usados por um dos personagens: clara alusão e uma evidente forma de colocar na tela a ideia principal, a de que o filme está falando do presente, onde os restos de uma tecnologia servem de suporte para a barbárie e uma árvore cresce nutrida pela ira.