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Cinema
Hélio Nascimento

Hélio Nascimento

Publicada em 02 de Maio de 2024 às 20:49

Tesouros ocultos

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Hélio Nascimento
Ao iniciar seu filme La Chimera com a abertura da ópera Orfeu, de Claudio Monteverdi, Alice Rohrwacher não deixa dúvida sobre o que veremos na tela nos próximos 130 minutos: uma variação em torno da tentativa daquela figura mitológica em trazer de volta à vida Eurídice, levada ao mundo dos mortos e deixando solitário e infeliz aquele que com seu canto a todos fascina e que então inicia uma jornada tentando trazer de volta a sua amada. A diretora, que também é uma das autoras do roteiro, não se limita a seguir as indicações possibilitadas pela mitologia. Realiza um filme moderno no qual as referências são claras e, ao mesmo, tempo possibilitando a encenação de um drama que revela que são sempre atuais as narrativas que atravessam os séculos. O filme, sem dúvida um dos melhores da atual temporada, é estruturado de uma forma a colocar o espectador diante de imagens e situações que, à medida em que o tempo passa, revelam a personalidade dos personagens e seus papeis na trama narrada. Nos planos iniciais, durante uma viagem de trem, quando o sol parece seguir os personagens, a palavra tem origem no passado, algo que a imagem revela. A mulher perdida surge várias vezes durante a ação, viva e sempre presente na memória do protagonista.
Ao iniciar seu filme La Chimera com a abertura da ópera Orfeu, de Claudio Monteverdi, Alice Rohrwacher não deixa dúvida sobre o que veremos na tela nos próximos 130 minutos: uma variação em torno da tentativa daquela figura mitológica em trazer de volta à vida Eurídice, levada ao mundo dos mortos e deixando solitário e infeliz aquele que com seu canto a todos fascina e que então inicia uma jornada tentando trazer de volta a sua amada. A diretora, que também é uma das autoras do roteiro, não se limita a seguir as indicações possibilitadas pela mitologia. Realiza um filme moderno no qual as referências são claras e, ao mesmo, tempo possibilitando a encenação de um drama que revela que são sempre atuais as narrativas que atravessam os séculos. O filme, sem dúvida um dos melhores da atual temporada, é estruturado de uma forma a colocar o espectador diante de imagens e situações que, à medida em que o tempo passa, revelam a personalidade dos personagens e seus papeis na trama narrada. Nos planos iniciais, durante uma viagem de trem, quando o sol parece seguir os personagens, a palavra tem origem no passado, algo que a imagem revela. A mulher perdida surge várias vezes durante a ação, viva e sempre presente na memória do protagonista.
A forma como Rohrwacher ergue sua alegoria, sempre retirada da realidade e não a ela imposta, permite que a cineasta acompanhe as atividades de um grupo de saqueadores de túmulos etruscos em busca de objetos valiosos sepultados junto com seus donos. O Orfeu moderno, ao mesmo tempo que não consegue esquecer a amada morta, visita o mundo das sombras em busca de tesouros, no que é acompanhado por um grupo com o qual se relaciona de forma precária. Sua descida a um mundo oculto - e este detalhe é revelador - faz parte de uma engrenagem melhor organizada e evidentemente movida por outros interesses. Em vez da lira e do canto, o interesse material é que domina. O nome sob a qual se esconde, o de um escravo rebelado, a personalidade dominante, é clara demonstração de que a beleza original é deturpada e aviltada por interesses puramente materiais, algo que dá origem uma cena bastante significativa, quando o protagonista se recusa a permitir que a mulher amada se integre a um ritual mecânico e dominado pela cobiça. É um sacrifício simbólico, algo que se aproxima ao olhar proibido da mitologia.
O filme está igualmente marcado por muitas lições de como a imagem sempre será elemento predominante, embora nunca o único, como está claramente exposto na cena inicial. O cenário que cerca o personagem principal não deixa dúvida sobre a essência de um mundo dilacerado por uma crise de grandes proporções, no qual uma professora de música e suas filhas e alunas são a expressão de um mergulho desesperado e inútil em formas culturais. Só na fantasia parece possível escapar da escuridão que domina a tela por alguns instantes, antes de um onírico reencontro. E duas curiosidades: a personagem brasileira é vivida pela atriz Carol Duarte, antes vista em Vida invisível, de Karim Ainouz. E o protagonista, um britânico dotado de dons para encontrar túmulos ocultos, o equivalente à música de Orfeu, é interpretado por Josh O'Connor, ator que viveu o príncipe Charles, em alguns episódios da série The Crown. Nos tempos atuais, La Chimera chega aos cinemas locais quase escondido entre as aclamações que sempre merecem produções de pouco valor. Mas é obra a ser prestigiada enquanto houver oportunidades. Não é uma atração de bilheteria, mas merece atenção de todos aqueles que ainda procuram prestigiar o cinema que tenta trazer para a luz temas que aos poucos vão sendo abandonados, em processo comandado pelos cultores de superficialidades e pelos adoradores de falsas imagens. Talvez ainda seja possível impedir que o culto das facilidades a tudo domine. La chimera lembra que, mesmo na mais completa escuridão, é possível encontrar no passado conservado pela memória uma saída e um encontro com tesouros ocultos. A imaginação, as imagens e momentos preservados terminam prevalecendo e formando a riqueza maior.
 

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