Assim como existem, espalhados pelo mundo, festivais de cinema, não sendo necessário lembrar aos cinéfilos os mais conhecidos, há, como é sabido, mostras de pintura, promoções destinadas a divulgar o movimento editorial e os dedicados à música. Um deles, e dos mais antigos, é o BBC Proms, realizado anualmente em Londres e do qual participam orquestras, instrumentistas e cantores de todo o mundo. Os seus organizadores são atentos a todo o universo cultural nos mais diversos países. Vale lembrar que, para assinalar o centenário da morte de Heitor Villa-Lobos, sua noite de encerramento foi dedicada àquele compositor brasileiro, com a execução do Choro Número 10. O palco das apresentações é o Royal Albert Hall, que foi o cenário no qual Hitchcock realizou uma antológica sequência de O homem que sabia demais, na segunda versão, aquela interpretada por Doris Day e James Stewart. A noite de encerramento é uma festa transmitida pela TV para todo o Reino Unido. O festival londrino dura cerca de 40 dias e sua homenagem a Villa-Lobos pode ser vista no Youtube. O encerramento é tão concorrido que telões são localizados em várias cidades para que pessoas confraternizem e assistam também nas ruas peças da música britânica e, como no caso de Villa-Lobos, de compositores de outras nacionalidades. Algo que merece destaque numa coluna dedicada ao cinema é que neste ano, mais precisamente no dia 11 de agosto, algo inédito acontecerá: o Festival vai homenagear Stanley Kubrick. Naquela noite, a orquestra regida por Edward Gardner interpretará um programa intitulado Uma odisseia no espaço, integrado por obras utilizadas por aquele cineasta em seu maior filme.
Kubrick era um apaixonado por música e quase sempre soube revelar ao público a essência de muitas peças, como, por exemplo, na cena que parece retirada de uma página de Engels, na Dialética da natureza: a descoberta e a transformação da mão em arma poderosa. Em tal cena ele utiliza a abertura do poema sinfônico Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss. Assim como utilizou O Danúbio azul, de Johann Strauss, filho, para reforçar a ideia da eterna transformação através do símbolo do rio como a passagem do tempo e o azul referente ao universo contemplado pelo ser humano. A valsa está ausente do programa, mas serão interpretadas, além do poema sinfônico, cuja abertura é utilizada no início do filme, na já mencionada cena da grande descoberta e também no final, duas obras do húngaro Giorgy Ligetti: o Requiem e Lux Aeterna. O canal da BBC no Youtube provavelmente transmitirá o concerto. Peças de compositores como Ennio Morricone e John Williams já foram interpretadas por orquestras regidas pelos autores em várias cidades, mas esta é a primeira vez que um festival de música homenageia um diretor de cinema, através de peças por ele escolhidas para um filme.
Um outro acontecimento curioso em relação a encontros entre música e cinema é o de Bernard Hermann, que foi um grande parceiro de Hitchcock e que aparece regendo a orquestra na célebre cena de O homem que sabia demais, na interceptação da cantata Nuvens de tempestade, de Arthur Benjamin. Hermann também foi colaborador de Orson Welles, outro melômano, em Cidadão Kane. O diretor pediu a Hermann que utilizasse uma ária de ópera que iniciasse um ato, para uma cena do filme que começa com a cortina sendo erguida. Hermann disse a Welles que tal cena não existia e resolveu escrever ele próprio uma ária. Em tal momento do filme a ária de uma ópera fictícia, chamada Salambo, era "assassinada" pela esposa do protagonista. Quando a aria chega ao fim apenas o marido, o poderoso Kane, aplaude a desastrada interpretação. A curiosidade aqui é que a ária escrita por Hermann décadas depois foi gravada por Kiri Te Kanawa, uma das intérpretes do Don Giovanni dirigido por Joseph Losey, a partir da ópera de Mozart. O nome da cantora fará certamente com que os admiradores do gênero procurem, através dos diversos caminhos hoje possíveis, a versão correta da peça de Hermann, escrita para uma cena de um dos maiores filmes da história do Cinema.