Considerado um divisor de águas devido a forma que os órgãos de proteção passaram a olhar as violências intrafamiliares, a morte do menino Bernardo Uglione Boldrini, em Três Passos - ocasionada pelo medicamento Midazolam -, completou 11 anos neste mês. O município de 25 mil habitantes, no Noroeste do Rio Grande do Sul, vivencia o luto até hoje.
De acordo com a Polícia Civil, o menino, de apenas 11 anos, foi visto pela última vez no dia 4 de abril de 2014, quando ia dormir na casa de um amigo. Dias depois, o pai de Bernardo, o médico Leandro Boldrini, procurou uma emissora de rádio para pedir ajuda nas buscas. Além da rádio, cartazes foram espalhados em diferentes pontos do município.
O corpo do menino foi encontrado 10 dias depois, em Frederico Westphalen, enterrado, sem roupas, às margens de um rio, em um matagal. O atestado de óbito não indica a causa da morte, mas diz que teria sido de forma violenta e que o cadáver estava "em adiantado estado de putrefação". Na mesma noite, a polícia prendeu o pai, a madrasta, Graciele Ugulini, e uma amiga do casal, Edelvânia Wirganovicz. Já o irmão de Edelvânia, Evandro Wirganovicz, foi preso como suspeito de participação no crime.
Segundo o promotor de Justiça, Bruno Bonamente - que realizou a denúncia -, na tarde que foram para Frederico Westphalen, Graciele havia dito que estava sozinha. "As investigações identificaram que ele estava com ela, mas as duas retornaram e o Bernardo não estava junto". Ainda antes de iniciar o trajeto, o menino tomou a primeira dose do medicamento por via oral. Graciele informou que era um remédio para evitar enjoos durante a viagem, porém, a substância foi reaplicada por via intravenosa, já na presença de Edelvânia.
Antes do crime, o menino, órfão de mãe, se dizia carente de atenção. "Tinha um procedimento na Vara da Infância, que o Bernardo dizia que "não era amado". Mesmo assim, o casal se comprometeu em cuidar, mas não se imaginava que por trás disso eles estavam tramando a morte dele", lamenta o promotor.
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O comportamento apresentado contribuiu para que o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) conseguisse todas as provas necessárias para oferecer a denúncia. "A comunidade ficou tão aflita com a situação que queria expor toda situação que ele vivenciou antes de morrer", conta Bonamente. Ainda de acordo com ele, "antes do crime, o casal fazia chacota com o garoto. Eles abandonaram e fizeram tortura psicologica. Depois do crime, eles tentaram mostrar um viés diferente, pai e madrasta preocupados com o desaparecimento".
Os quatro acusados de participar da morte foram pronunciados pela Justiça mais de um ano depois do crime. "Foi a sociedade de Três Passos que fez o julgamento do caso", reforça o promotor. O julgamento, porém, ocorreu apenas em 2019. Após cinco dias e 50 horas, o júri decidiu pela condenação dos quatro réus.
Ainda aberto perante a justiça, o caso apresentou atualizações neste mês. Graciele Ugulini - condenada a 34 anos e sete meses de prisão por homicídio quadruplamente qualificado e ocultação de cadáver - , teve a progressão de regime autorizada pela Justiça, no último dia 18. Agora, ela cumpre pena em regime semiaberto.
Já a amiga Edelvânia Wirganovicz - condenada a 22 anos e dez meses de prisão por homicídio triplamente qualificado e ocultação de cadáver -, foi encontrada morta, no Instituto Penal Feminino, em Porto Alegre, no dia 22. Anterior à morte, o advogado responsável já havia sinalizado que ela sofria ameaças no local.
A defesa ainda alegou que se algo acontecesse o responsável seria o Ministério Público. Edelvânia foi encontrada morta com sinais de enforcamento. Os dados preliminares apontam que a própria apenada tenha cometido o ato. Em nota, a defesa lamentou a morte de Edelvânia. Já o irmão dela, Evandro Wirganovicz, foi sentenciado a nove anos e seis meses em regime semiaberto. Ele já cumpriu a pena e está solto.
Inicialmente, o pai foi condenado a 33 anos e oito meses. Segundo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), a "defesa pediu a anulação por conta da conduta do Promotor de Justiça durante o interrogatório do réu". O TJ-RS concluiu que ele utilizou o interrogatório para antecipar a acusação, havendo quebra da paridade de armas, uma vez que não foi possível fazer o contraponto. O novo júri ocorreu em 2023 também em Três Passos e resultou na condenação de Boldrini a 31 anos e oito meses de prisão.
Atualmente, ele cumpre pena em regime semiaberto junto ao Instituto Penal de Santa Maria. Em fevereiro deste ano, ele teve o registro cassado pelo Conselho Federal de Medicina (Cremers). O restante das defesas, no entanto, não retornaram até o fechamento da matéria.
Em maio de 2014, a Lei Menino Bernardo, popularmente chamada Lei da Palmada, foi sancionada. Segundo o defensor William Foster, da Defensoria Pública, a lei "busca afastar dos processos de educação a utilização de castigos físicos, cruéis ou degradantes, mas, principalmente, trata da dignidade das crianças".