Era julho de 1994. O Brasil parava para acompanhar a Copa do Mundo e se adaptava à nova moeda, o real. Em Porto Alegre, porém um evento chocante desviava a atenção da população: o maior motim da história do Rio Grande do Sul. Durante 48 horas, criminosos tomaram reféns, escaparam da prisão e espalharam o terror pela cidade, culminando em uma cena digna de filme de ação — a invasão do Hotel Plaza São Rafael.
O episódio, liderado por Dilonei Melara, não foi apenas um caso de polícia. Representou a ascensão do crime organizado no Estado, expôs o colapso do sistema prisional e impôs uma guinada na política de segurança pública gaúcha.
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Na tarde de 7 de julho, uma quinta-feira de frio cortante, a rotina do Hospital Penitenciário do Presídio Central foi quebrada por uma encenação milimetricamente planejada. Pedro Inácio, o Bugigão, simulou um ataque respiratório. Ao ser atendido, rendeu um funcionário. Simultaneamente, Vladimir da Silva, o Sarará da Vovó, dominava o diretor da unidade, Claudinei dos Santos. Com armas escondidas no local, o grupo deu início à rebelião.
Em poucos minutos, 27 pessoas haviam sido feitas reféns. O juiz Marco Scapini e o deputado estadual Marcos Rolim foram ao local para negociar. Em seguida, pediram a transferência de dois presos e, depois, a chegada de Melara e Celestino Linn, que estavam na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas.
Melara já era considerado um líder temido. Ex-agricultor, havia se tornado peça-chave no submundo do crime, organizando fugas e consolidando alianças entre presos. Sua entrada mudou a dinâmica do motim. "Foi quando tudo ganhou maior amplitude", recorda o jornalista Renato Dornelles, que cobriu o caso. "A partir dali, ficou claro que quem comandava era ele."
Na noite seguinte, autoridades autorizaram a saída de dez detentos em três veículos, acompanhados de nove reféns. A polícia, que prometeu manter distância, quebrou o acordo. "Parecia cena de cinema", conta Dornelles. Um dos carros atolou na Lomba do Pinheiro. Cercado, foi alvejado. Três criminosos morreram. Outro carro bateu próximo ao shopping Iguatemi. Um fugitivo tentou roubar outro veículo, mas foi impedido por um segurança.
O terceiro veículo — com Melara, Linn e outros líderes — seguiu até o bairro Petrópolis. Com uma pane na rua Ivo Corsseiul, foi cercado. No confronto, o diretor Claudinei dos Santos foi baleado e ficou paraplégico. Um policial civil morreu. A cidade, perplexa, acompanhava cada detalhe.
"Era um barril de pólvora", relembra o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) André Vilarinho, então diretor do Departamento de Estabelecimentos Penais (DEP), atual Susepe. "Sabíamos que o pior podia acontecer."
Com reféns ainda sob seu poder, os criminosos roubaram um carro de uma emissora de TV e depois um táxi. Cogitaram invadir o Palácio Piratini, onde casava a enteada do então governador Alceu Collares, mas mudaram de ideia ao avistar o Hotel Plaza São Rafael.
A perseguição seguiu até o Centro. "Eles atravessaram a cidade com viaturas e até repórteres atrás", relata Dornelles. "Na entrada do hotel, obrigaram o taxista a avançar e arrebentar a porta de vidro. Dentro, acontecia um congresso de psiquiatria. Virou pânico".
Já era madrugada de sábado quando o táxi invadiu o saguão. Melara e um comparsa, Fernandinho, subiram com duas reféns. Linn correu em direção ao salão principal. A polícia cercou o prédio e deu início a horas de tensão. Linn foi baleado e morreu dias depois.
O cerco só terminou por volta das 14h, momentos antes de Brasil e Holanda se enfrentarem pelas quartas de final do Mundial. Melara e Fernandinho se renderam após a chegada do corregedor de Justiça, desembargador Décio Erpen, que argumentava justamente o interesse em assistir à partida.
Cinco pessoas morreram durante o motim — quatro criminosos e um policial civil. Outras 11 ficaram feridas. A rebelião escancarou o sucateamento do sistema prisional gaúcho e evidenciou a fragilidade institucional diante das facções.
Para Vilarinho, foi um divisor de águas. "Ficou evidente que não havia estrutura para lidar com situações assim. Mas aquilo nos obrigou a reagir." Nos anos seguintes, o Estado investiu na ampliação do sistema, construiu presídios de segurança máxima e reforçou o efetivo da Susepe, principalmente levando a Brigada Militar para dentro dos presídios. O Ministério Público também passou a fiscalizar melhor o sistema penitenciário.
O episódio ainda teve efeitos menos visíveis, mas profundos. "Foi o marco da consolidação da facção Os Manos", lembra Dornelles. "Melara virou símbolo de uma liderança mais articulada e estratégica. O crime passou a operar com comando centralizado".
Melara, no entanto, teve um fim trágico. Em 2005, novamente foragido, foi encontrado morto no Vale do Sinos, com o corpo desfigurado por tiros. Seu assassinato, até hoje, permanece sem resposta.