A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que busca reduzir a jornada máxima de trabalho de 44 para 36 horas semanais no Brasil, encerrando o regime 6x1 (seis dias de trabalho para um de descanso), já se consolida como um dos temas de maior impacto social debatidos em 2024 na Câmara dos Deputados. De autoria da deputada federal Érika Hilton (PSOL-SP), a proposta já obteve as assinaturas necessárias para ser tratada como prioridade e deve seguir para votação em breve.
O debate na Câmara tem se polarizado, de maneira geral, entre a esquerda, que apoia a medida, alegando uma melhora na qualidade de vida, e a direita, que a critica, citando o impacto econômico. No entanto, a proposta transcende a política e, caso seja aprovada, promete profundas mudanças na sociedade brasileira.
Nesta terça-feira (26), o Jornal da Lei inicia uma série de reportagens sobre esse tema, buscando trazer o máximo de perspectivas possíveis. Nesta edição, a professora de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e doutora pela Universidade de São Paulo (USP), Valdete Souto Severo, detalha as principais mudanças previstas caso a PEC seja aprovada, identifica os setores mais impactados e discute as transformações históricas nas relações de trabalho no Brasil.
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Jornal da Lei - O que está sendo proposto por essa PEC?
Valdete Souto Severo - A proposta busca reduzir a jornada semanal de trabalho para 36 horas, divididas em quatro dias de 8 horas, diferente da carga atual de 44 horas semanais. No entanto, há uma inconsistência matemática: quatro dias de 8 horas totalizam 32, não 36 horas.
JL - Você acredita que essa mudança é viável?
Valdete - Reduzir a jornada de trabalho é fundamental e uma luta histórica da classe trabalhadora. As primeiras greves no Brasil e na Inglaterra já reivindicavam isso. Entretanto, a mudança proposta, por si só, pode ser insuficiente. O texto permite a compensação de jornada e não aborda o impacto das horas extras habituais, práticas que atualmente ampliam a carga de trabalho real. Muitos trabalhadores acabam atuando além das 44 horas semanais permitidas por meio desses acordos. Para ser efetiva, a proposta deveria eliminar a possibilidade de compensação de jornada e revisar dispositivos da reforma trabalhista de 2017, como os artigos 59 e 59-B, que flexibilizaram essas regras.
JL - Caso aprovada, quais setores seriam os mais impactados?
Valdete - Não é possível apontar com precisão os setores mais impactados, mas, caso ocorra uma redução efetiva, é certo que haverá reflexos significativos em áreas marcadas pela exploração da mão de obra, como hospitais, o setor de vigilância, limpeza e conservação — onde jornadas de 12 horas já se tornaram comuns —, além da indústria e do comércio.
JL - Essa proposta tem gerado discussões tanto no campo jurídico quanto no político. Como você enxerga essa relação?
Valdete - Não dá para separar direito e política nesse caso. A regulação do tempo de trabalho reflete escolhas políticas e econômicas, além de impactar diretamente o modelo de sociedade que queremos. A redução da jornada é uma pauta historicamente associada à esquerda, mas atualmente tem ganhado apoio em outros campos políticos. É um tema que toca desde o bem-estar social até a dinâmica econômica, podendo gerar efeitos como aumento do consumo e melhoria na qualidade de vida.
JL - Na maioria dos casos, quem se posiciona contrário à medida alega problemas econômicos. O que pensa sobre isso?
Valdete - Esse argumento é recorrente na história das relações de trabalho. Quando se instituiu o direito a férias, por exemplo, houve críticas de que trabalhadores "esqueceriam suas funções" ou de que a economia seria prejudicada. O mesmo aconteceu com o 13º salário. No entanto, esses direitos provaram ser benéficos, tanto aos trabalhadores quanto à economia. Reduzir a jornada pode aumentar custos inicialmente, mas também gera efeitos positivos, como menos afastamentos por saúde, maior produtividade e maior tempo para consumo e atividades sociais. Estudos mostram que empresas e países que adotaram a redução registraram benefícios econômicos e sociais.
JL - Você poderia citar outras mudanças trabalhistas que enfrentaram resistência, mas se mostraram positivas?
Valdete - Além dos já citados direito às férias e ao 13º salário, outras mudanças exemplares incluem as jornadas máximas e o salário mínimo. No contexto global, após a crise de 1929, o New Deal nos Estados Unidos implementou uma série de direitos trabalhistas que ajudaram a reativar a economia. No Brasil, o impacto dessas conquistas foi similar: direitos como férias remuneradas e o 13º salário impulsionaram o consumo e demonstraram que garantir dignidade aos trabalhadores é benéfico para a sociedade e a economia como um todo.