Porto Alegre,

Anuncie no JC
Assine agora

Publicada em 11 de Novembro de 2024 às 20:27

Caso Antonio Cicero reacende debate sobre eutanásia no Brasil; entenda o contexto jurídico

Em outubro deste ano, poeta realizou suicídio assistido na Suíça

Em outubro deste ano, poeta realizou suicídio assistido na Suíça

Divulgação/ABL/JC
Compartilhe:
Gabriel Margonar
Gabriel Margonar Repórter
“Queridos amigos, encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. Minha vida tornou-se insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer, não consigo mais escrever bons poemas ou ensaios filosóficos. Não consigo nem mesmo ler, que sempre foi minha maior paixão. Apesar disso, ainda sou lúcido o suficiente para reconhecer minha terrível situação.”
“Queridos amigos, encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. Minha vida tornou-se insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer, não consigo mais escrever bons poemas ou ensaios filosóficos. Não consigo nem mesmo ler, que sempre foi minha maior paixão. Apesar disso, ainda sou lúcido o suficiente para reconhecer minha terrível situação.”
As palavras de despedida do escritor e filósofo Antonio Cicero, enviadas em carta a amigos próximos antes dele realizar suicídio assistido na Suíça, no final de outubro, causaram uma comoção à altura de sua trajetória. Seu gesto final, além de inspirar reflexões, reacendeu no Brasil um debate há muito esquecido – e frequentemente ignorado: o direito a uma morte digna.

Cicero, imortal da Academia Brasileira de Letras, sempre foi uma voz influente em questões existenciais e filosóficas, e sua decisão final não é apenas uma reflexão pessoal sobre o sofrimento, mas um marco na discussão sobre a autonomia do indivíduo frente à morte. Sua escolha levantou questões sobre a necessidade de regulamentação da eutanásia e do suicídio assistido no Brasil, onde ambas continuam sendo práticas ilegais.

O Cenário Brasileiro

Atualmente, no País, a única prática legal que oferece esse tipo de dignidade aos pacientes terminais é a ortotanásia, que permite a suspensão de tratamentos invasivos e ineficazes para aqueles sem chance de recuperação, priorizando cuidados paliativos para aliviar o sofrimento. 
Para entender melhor o quadro jurídico, o Jornal da Lei conversou com a advogada especialista em Direito Médico e da Saúde, Daniela Ito, que compartilhou sua visão sobre o tema.
Daniela Ito propõe um olhar mais amplo sobre o tema no País | Daniela Ito/Arquivo pessoal/JC
Daniela Ito propõe um olhar mais amplo sobre o tema no País Daniela Ito/Arquivo pessoal/JC


Jornal da Lei – Como a legislação brasileira trata a eutanásia e o suicídio assistido?

Daniela Ito - O Brasil ainda está muito atrasado nesse debate, em parte por causa da forte influência da cultura judaico-cristã, que se opõe a essas práticas. Ambas são criminalizadas, e qualquer pessoa que as pratique ou incentive pode ser processada por homicídio e incentivo ao suicídio, conforme o Código Penal. Mesmo quando a intenção é aliviar o sofrimento, ainda há penalização, com a possibilidade de redução da pena, caso o tribunal reconheça um valor moral relevante no ato.

JL – Há alguma discussão sobre a legalização desses procedimentos?

Daniela - Nenhuma proposta relevante jamais avançou no Legislativo, justamente devido à resistência cultural. Existem discussões acadêmicas, principalmente nas áreas de bioética e Direito Médico, mas o tema ainda não chegou com força ao Congresso. É um tema que gera muita polêmica, similar ao que ocorre com o aborto, por exemplo.

JL – E em outros países, há uma tendência para regulamentação dessas práticas?

Daniela - Sim. Em vários países da Europa, como a Holanda, Bélgica, Espanha e Itália, a eutanásia e o suicídio assistido são legais. Também temos o Canadá e alguns estados dos EUA que permitem essas práticas. A tendência está crescendo, com mais pessoas questionando o modelo atual e pedindo maior atenção a essas questões. Infelizmente, aqui na América Latina, o tema ainda encontra resistência, mas tenho esperanças de que possamos avançar num futuro breve. 
JL – Existe alguma prática legal que ofereça uma morte digna no Brasil?

Daniela - A ortotanásia, que é legalizada no nosso País e regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina. Ela permite a suspensão de tratamentos invasivos e ineficazes para pacientes em estado terminal, permitindo que a doença siga seu curso natural. Não se trata de interromper a vida, mas de assegurar que o paciente receba cuidados paliativos que minimizem o sofrimento e deem qualidade de vida nos últimos momentos. Portanto, é um ato de muito dignidade. Só que ainda requer esclarecimento para a sociedade brasileira, já que muitos, infelizmente, associam-na a um 'roubo da vida'. 
JL - Quais as diferenças entre eutanásia, ortotanásia e suicídio assistido?

Daniela - A eutanásia envolve uma ação direta de terceiros para causar a morte de um paciente em sofrimento extremo. Já o suicídio assistido ocorre quando o paciente recebe os meios para tirar sua própria vida, com apoio de um profissional, como no caso de Antonio Cicero. Por sua vez, a ortotanásia é a suspensão de tratamentos que prolongam o sofrimento em pacientes terminais, permitindo que a doença siga seu curso sem interferência.
JL – Como essas questões impactam o conceito de dignidade humana no Direito?

Daniela - Acredito que o direito de decidir como morrer é profundamente pessoal, e forçar alguém a suportar sofrimento desnecessário, sem perspectiva de cura, vai contra o princípio constitucional da dignidade humana. A autonomia de tomar decisões sobre nossa saúde e a maneira como vivemos e morremos deveria ser respeitada, pois a dignidade humana está intrinsecamente ligada ao direito de escolha sobre a própria vida.
Leia a carta de Antonio Cicero na íntegra:
“Queridos amigos, encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo. Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação. A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas — senão a coisa — mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los. Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”

Notícias relacionadas