Encerrando a série de matérias sobre a Lei Maria da Penha, o Jornal da Lei ouviu o juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo, ex-delegado de polícia e professor de Direito Penal André Norcia. Com mais de duas décadas de trajetória profissional, o legislador presenciou as mudanças no sistema judiciário brasileiro decorrentes da legislação e as analisa nesta entrevista, na qual também comenta sobre os avanços e desafios no combate à violência contra a mulher no Brasil.
Juiz André Norcia destaca os ganhos que a lei proporcionou na defesa das mulheres
André Norcia/Arquivo pessoal/JC
Jornal da Lei - Como alguém que lida diariamente com casos de violência, o que há de mais importante na Lei Maria da Penha?
André Norcia - Ela trouxe efetividade. Acabou aquela velha história de ficar a palavra de um contra a do outro e as mulheres não serem ouvidas. Os agressores estão pagando por seus crimes. E, isso, com o passar dos anos, gera uma espécie de conscientização coletiva, algo essencial, já que o Direito sem um efetiva atuação junto à comunidade, limita-se a uma mera recomendação estatal.
JL - O que há de mais notável ao analisarmos todo o histórico de aplicação dessa legislação?
Norcia - Justamente essa evolução educacional da sociedade. Ao longo desses 18 anos, as regras impostas pela Lei Maria da Penha foram ficando, pelo menos, no subconsciente das pessoas e mudaram a forma como elas enxergam algumas situações. Ao ver que certos atos não serão tolerados e que irão gerar consequência sérias, aquele indivíduo que antes cometia violência contra às mulheres, agora pensa duas vezes. Isso, somado com as constantes adições na amplitude da legislação, gera uma proteção cada vez maior para as brasileiras.
JL - Quais os tipos de violência abrangidos pela Lei Maria da Penha?
Norcia - Normalmente, esta legislação está associada à agressão física. Porém, é muito mais do que isso. A Lei amplia o conceito de violência contra mulheres para coisas que antes não se dava tanta atenção. São abrangidas agressões sexuais, patrimoniais (destruição de bens ou subtração de recursos financeiros), morais (calúnia, difamação ou injúria), perseguições, entre outras coisas. É importante perceber ainda que ela não tem limitações, já que a violência pode ocorrer de formas mais específicas.
JL - Podes compartilhar alguma experiência pessoal no atendimento à mulheres vítimas de violência antes e após a criação desta legislação?
Norcia - Sempre defendo que a Maria da Penha é um marco para o nosso sistema judiciário, justamente porque presenciei, como delegado, o tamanho que era a impunidade contra os agressores no País. Já vi casos de mulher sangrando prestar queixa de violência doméstica, o marido ser liberado e ela ter medo de voltar para casa, me pedir para dormir na delegacia. O próprio crime de lesão corporal, dependendo da intensidade, era punido apenas com o pagamento de cestas básicas. Hoje, casos como o que eu relatei são resolvidos, ao menos, através de medidas protetivas, que impedem o agressor de chegar próximo de sua vítima.
JL - E quais avanços ainda são necessários?
Norcia - Seria uma inverdade se eu respondesse que não há aspectos jurídicos que necessitem evolução. Mas, hoje, enxergo muito mais como uma questão do Poder Executivo aprimorar a aplicação da Lei e conseguir concretizar aquilo que ela já traz. Não de forma jurídica, mas social. Cito, por exemplo, a Casa da Mulher Brasileira, centro de atendimento humanizado e especializado para situações de violência doméstica que ainda não se faz presente em todos os municípios. No Rio Grande do Sul, há uma tornozeleira eletrônica que alerta caso a medida protetiva de distanciamento não esteja sendo cumprida... É o tipo de coisa que pode servir para exemplo para todas as regiões.
JL - O que explica o aumento ano após ano no número de casos de violência no Brasil?
Norcia - A violência é uma realidade social e possui diversos fatores contribuintes, como o alcoolismo, problemas econômicos, desestrutura familiar, entre outros. Cada vez há mais estudos sobre as causas que contribuem para esses números, mas está longe de ser um tema simples. Estamos diante de um problema que une diversas áreas, não é o Direito, sozinho, que irá resolvê-lo.