Sancionada em 2006, a Lei Maria da Penha é um fenômeno jurídico raro no Brasil, havendo consenso sobre sua importância para o País e amplitude na defesa das mulheres. A legislação, que já foi considerada pela ONU como a terceira melhor contra violência doméstica do mundo, vai além do aspecto físico, abordando também formas de violência psicológica, como isolamento social, difamação e destruição de pertences. Nos 18 anos de sua criação, o Jornal da Lei inicia uma série de reportagens, abordando qualidades, desafios e avanços na legislação ao longo deste período.
Dificuldades na implementação
Que a Lei Maria da Penha é uma das melhores legislações do mundo quando o assunto é defesa das mulheres, não há dúvidas. Porém, o que também não gera questionamentos é a quantidade de obstáculos para sua efetiva implementação.
Uma das principais dificuldades está na falta de infraestrutura adequada para o atendimento das vítimas no Brasil. Atualmente, a principal porta de entrada na rede de atendimento e proteção às mulheres é através das delegacias especializadas. Porém, o último levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o assunto, em 2019, apontava que apenas 417 municípios possuíam tais órgãos em sua estrutura administrativa - menos de 10% das cidades brasileiras.
Além disso, conforme explica o advogado Rafael Paiva, outro problema significativo é a não aplicabilidade da lei em sua íntegra por parte de juízes e delegados. Isso faz com que, por vezes, quando a denúncia consegue ser feita, ela esbarre na escassez de profissionais capacitados para lidar com casos do tipo ou na morosidade do sistema judiciário.
"Quanto à legislação, estamos muito na frente de outras nações. Mas o nosso maior problema tem sido, assim como ocorre com a maioria das leis brasileiras, em sua aplicação e nas autoridades executarem-na devidamente. Grandes resultados práticos só irão aparecer quando essa realidade for modificada", explica.
Para a advogada Bruna Melgarejo, contudo, antes da aplicabilidade, os desafios estão muito mais relacionados à educação da sociedade brasileira. No ensinamento, desde a infância, sobre igualdade de gênero e respeito. "O que nos falta é uma conscientização prévia enquanto sociedade. Temos que nos prevenir e não depender somente da legislação para que a violência cesse", afirma.
Outra problemática citada por Bruna está na alarmante desinformação em relação à Lei Maria da Penha: conforme revelado pela 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher, conduzida pelo Observatório da Mulher Contra a Violência (OMV) e Instituto DataSenado, com dados referentes ao final de 2023, apenas 20% das brasileiras se sentem bem informadas sobre sua principal legislação de defesa. Para a especialista, o dado é reflexo de um recorte social.
"Mesmo podendo ocorrer com todas as mulheres, de todas as classes sociais, a violência de gênero se faz muito mais presente contra mulheres negras e em situação de vulnerabilidade financeira. E isso sem dúvidas impacta no entendimento delas a respeito da legislação. Sem uma linguagem mais acessível e políticas públicas de inclusão, é comum que essa pessoa não busque entender o que essa lei pode fazer por ela e viva nesse tradicional ciclo de violência", destaca Bruna.
Números da violência
Ano após ano, há piora nos indicadores de violência contra a mulher em todo o Brasil. Segundos dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, com números referentes a 2023, todas as tipificações penais apresentaram alta quando comparadas com 2022.
A forma mais extrema de violência contra a mulher, o feminicídio, cresceu 0,8% (1.467 mulheres assassinadas ; agressões decorrentes de violência doméstica cresceram 9,8% (258,9 mil casos); ameaças subiram 16,5%, sendo o tipo de violência mais frequente em números absolutos (778, 9 mil); e, quanto aos estupros, a alta foi de 6,5% (83.988 vítimas = um a cada seis minutos)
Quanto aos dados, ambos os advogados preferem analisar por uma ótica positiva: a baixa na subnotificação.
A origem da Lei
Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica de Fortaleza, Ceará, foi vítima de violência doméstica pelo então marido, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. O homem tinha ataques de intolerância e explosividade, gerando um tradicional ciclo de violência sucedido por promessas de mudança.
Em 1983, ele atirou em Maria da Penha enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. Depois, a manteve em cárcere privado e tentou eletrocutá-la. Apesar das denúncias, a justiça brasileira inicialmente não agiu com veemência.
O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 1998, que responsabilizou o Brasil por negligência. Após debates, a Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva como resposta a essa situação.