João Dalmagro Junior
O prefeito de Porto Alegre não quer que os abrigos para vítimas das enchentes sejam "contaminados" por egressos do sistema penitenciário. Sebastião Melo defende que os espaços de acolhimento para "gente do sistema penal" devem abarcar abrigos "alternativos".
Para além de um preconceito rasteiro e infeliz, manifestado em meio a maior catástrofe ambiental do Rio Grande do Sul, suas palavras demonstram, no mínimo, o desconhecimento da responsabilidade do Poder Executivo pela realidade penitenciária gaúcha.
Melo deveria rememorar que a Lei de Execução Penal prevê o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime progressivo. O objetivo desse sistema é a reintegração das pessoas condenadas e presas ao convívio social e familiar. A Constituição Federal veda a pena perpétua - dentro ou fora do cárcere.
Além disso, ao insinuar a responsabilidade de outros órgãos pela situação vivida em Porto Alegre, como o Judiciário, o Ministério e a Defensoria Pública, o prefeito parece esquecer que muitas pessoas que compõem essa "gente do sistema penal" deveriam estar sob a vigilância estatal, o que só não acontece por omissão do Estado, que não proporciona vagas prisionais para o regime semiaberto há aproximadamente 12 anos e não providencia tornozeleiras eletrônicas em número suficiente.
As declarações de Melo são, além do mais, alarmistas e eugenistas. Alarmistas, porque inculcam na população devastada pelas cheias, o medo e a ideia retrógrada e medieval de que as pessoas que iniciam seu retorno gradual ao convício social oferecem perigo pelo simples fato de serem egressos do sistema prisional.
Eugenistas, porque incitam a divisão social ao defender que algumas podem "contaminar" as demais, subvertendo o princípio constitucional da igualdade, tão caro às democracias. É, de fato, um pensamento cruel e atroz, porque desumaniza o condenado. Ao fazer isso, retira da "gente do sistema penal" a sua condição de desabrigada e de vítima da hecatombe ambiental, desdenha da sua vulnerabilidade e esvazia a esperança que ainda lhe resta. Nas circunstâncias atuais, esse tipo de discurso inconsequente representa mais um passo em direção ao abismo social do preconceito higienista, que divide ao invés de unir. O povo do Rio Grande do Sul, condenado ou não, merecia palavras mais dignas.
Advogado criminalista