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Publicada em 04 de Junho de 2024 às 17:38

Suspensão da dívida com a União e o estrangulamento fiscal do RS

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Bolívar Charneski, contador, consultor e conselheiro de empresas
Bolívar Charneskicontador, consultor e conselheiro de empresas
Heron Charneski, advogado e contador, presidente do IGET
A suspensão das prestações da dívida do RS junto à União foi uma das primeiras medidas anunciadas pelo governo federal como parte das iniciativas de socorro às vítimas das enchentes que assolaram os gaúchos em maio, bem como à reconstrução do estado. Assim, no contexto da calamidade climática, em 16 de maio de 2024 foi sancionada a Lei Complementar (LC) nº 206.
A norma alonga as parcelas do passivo, que seria pago nos 36 meses vindouros. Estima-se que a medida venha a evitar pagamentos de cerca de R$ 11 bilhões à União nos próximos três anos, e mais R$ 12 bilhões com os juros da dívida. Em contrapartida, a LC 206/24 estabelece que os montantes que vierem a ser postergados deverão ser direcionados integralmente a plano de investimentos em ações de enfrentamento e mitigação dos danos decorrentes da calamidade pública e de suas consequências sociais e econômicas, por meio de fundo público específico a ser criado no âmbito do ente federativo. Para isso, exige que em 60 dias o RS encaminhe ao Ministério da Fazenda o plano de investimentos com os projetos e ações a serem executados.
Ainda que seja legítima a preocupação do legislador complementar com a responsabilidade fiscal do estado no uso das parcelas suspensas, essas disposições parecem ter sido elaboradas fora do contexto da realidade da tragédia que se instalou no RS. Foram 463 de seus 497 municípios diretamente atingidos e alguns, no final de maio, ainda com dificuldades de acesso ou sem ele. A dimensão da tragédia parece tornar difícil atender à exigência legal no prazo fixado, além do que o valor dos investimentos necessários para mitigar os danos será muito superior ao valor da prorrogação da dívida.
Afora isso, ao requerer que o valor das prestações mensais da dívida, ora suspensos, seja integralmente aplicado em investimentos, a LC nº 206/24 ignora a brutal recessão que o RS enfrentará pela destruição da infraestrutura e das atividades empresariais. Já no curto prazo, a arrecadação, nas esferas estadual e municipal, sofrerá significativa queda, comprometendo o pagamento de despesas correntes. Para um estado já em recuperação fiscal, a possibilidade de fazer os investimentos previstos será significativamente reduzida.
Como a lei não traz recursos novos para investimentos, haverá, por esse meio, poucas condições para recuperação. Ficam também implícitos os riscos políticos, caso o governo estadual não possa cumprir as exigências da lei, ou a inclusão das parcelas não pagas durante os 36 meses no saldo devedor inviabilize no futuro a manutenção do RS no Regime de Recuperação Fiscal (RRF).
Levantamento da Secretaria da Fazenda do RS, divulgado em 24 de maio de 2024, indica queda de 15% nas operações realizadas por empresas gaúchas nos últimos dias (chegando a 55% de queda no pior momento). Dos 287 mil estabelecimentos contribuintes do ICMS no RS, apenas 9% não foram diretamente afetados pelas enchentes, o que representa apenas 7% da arrecadação e 10% das vendas. A redução na arrecadação do ICMS entre 1º e 23 de maio de 2024 foi de 22,7%, chegando a R$ 2,31 bilhões, contra uma projeção antes das enchentes de R$ 3,02 bilhões para o mesmo período.
A serem mantidas as disposições da LC 206/24, o Regime de Recuperação Fiscal pode tornar-se um "Regime de Estrangulamento Fiscal" do RS. Todos esses constrangimentos podem afetar a autonomia do Estado, contrariamente ao princípio constitucional do pacto federativo. Portanto, importa que a sociedade gaúcha e suas lideranças políticas se mobilizem para alterar a Lei C nº 206/24, no sentido de abrir-se espaço legal para que o valor das parcelas suspensas da dívida com a União seja destinado, prioritariamente e sob os devidos controles, para recomposição das perdas de arrecadação do ICMS que certamente virão nos próximos meses.

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